Coringa é um filme perigoso

Cuidado: contém spoilers logo na primeira linha.

A câmera gira ao redor do protagonista. De pé sobre o capô de um carro, acima de um mar de pessoas, envolto pelo caos de uma sociedade em ruínas, o palhaço assassino é aclamado pela multidão. Eles o veem como um herói.

Os créditos sobem e o público fica estarrecido na sala de cinema. Não pela cena impactante – afinal, ver um vilão psicopata ser idolatrado pelo povo não é algo comum em filmes desse gênero. O que realmente estarrece e espanta o expectador é o fato de que, no fundo de seu íntimo, ele se identifica com o protagonista. Mesmo que negue conscientemente, algo em seu interior compreende que também ele poderia se tornar um Coringa da vida real.

Esse é o poder oculto por trás de Joker (EUA, 2019), dirigido por Todd Phillips e com a magistral atuação de Joaquim Phoenix: despertar o expectador para as mazelas da sociedade, para a podridão da alma e, principalmente, para as desumanidades do dia a dia.

Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) é um artista com um sonho: ele almeja as grandes plateias e se vê em um futuro de fama e sucesso, arrancando gargalhadas de seu público, nos palcos da TV ou nas casas de show. Desde criança sua mãe lhe dizia que sua missão era levar alegria ao povo. De forma carinhosa, ela o chama sempre de ‘Feliz’.

No entanto, Arthur é um palhaço anônimo que trabalha em uma empresa decadente, fazendo anúncios em portas de loja ou animando festas de criança.

Fleck queria ser comediante, mas era apenas um palhaço frustrado.

Ainda no início do longa, uma cena inusitada: o protagonista apanha de um grupo de adolescentes que rouba sua placa de publicidade e zomba de sua condição de palhaço – algo impensável ao se lembrar que aquele é o mais cruel inimigo das histórias em quadrinhos.

As cenas de humilhação e segregação se desenrolam ao longo de todo o roteiro e servem para contextualizar a formação da personalidade de Fleck. Traumas da infância se somam ao drama, em uma trama muito bem amarrada, que envolve a alta classe da cidade – representada aqui por Thomas Wayne (Brett Cullen), pai do ainda infante Bruce Wayne (o futuro Batman).

As promessas de sucesso do capitalismo – que nunca são alcançadas pelo cidadão comum – também são fonte de frustração. Não só isso, mas também as questões de política pública, falta de assistencialismo e a crescente desigualdade social que assolam Gothan City servem de contexto para formação de uma mente doentia, que busca na violência um modo de se fazer notar – talvez até mesmo encare-a como forma de justiça.

“Clube da Luta” (1999) trouxe a violência como válvula de escape.

Os temas não são novidade. Os valores do capitalismo já foram questionados em diversos filmes e a violência como resposta foi muitas vezes encenada. Tyler Durden (Brad Pitt), de Clube da Luta (Fight Club, EUA, 1999) foi o Coringa da virada do milênio. Em uma de suas falas, o personagem diz: “Fomos criados pela televisão para acreditar que um dia seríamos ricos, estrelas do cinema ou astros do rock. Mas não seremos. E estamos aos poucos aprendendo isso. E estamos muito, muito revoltados”.

Coringa não é uma adaptação de quadrinhos propriamente dita. Das HQs foram aproveitadas apenas as características do personagem e sua personalidade. Todo o restante do roteiro foi retirado de outros lugares, transformando o louco de Gothan em um personagem complexo, estruturado e contextualizado.

Taxi Driver, de Martin Scorsese, foi a principal inspiração para o novo Coringa

Phillips bebeu da fonte de Scorsese e buscou em Taxi Driver (EUA, 1976) a loucura do protagonista perante a solidão e exclusão social. Em O Rei da Comédia (The, King of Comedy, EUA, 1981), o diretor encontrou a personalidade do maníaco que deseja o estrelato a todo custo, mesmo que não tenha talento para isso. Por fim, O Homem que Ri (The Man Who Laughs, EUA, 1928) trouxe a inspiração necessária para tirania do povo – não do protagonista. Neste longa com características do expressionismo alemão, Todd Phillips buscou a insanidade social, que transforma um defeito físico em algo bizarro e condena o protagonista – cuja deficiência dos lábios o obriga a rir constantemente – a uma vida de exclusão, cuja única chance de sobrevivência é em um circo de horrores.

Somadas tais inspirações, criou-se um Coringa que não expõe ao público  apenas a loucura pura e doentia de um psicopata, mas os caminhos que levam uma pessoa aparentemente fraca a se tornar um criminoso. E é aí que a obra se torna perigosa. Não pela suposta capacidade de transformar expectadores em assassinos, mas pela competência em despertar a população para o real meio ao qual está inserida.

Coringa não é um herói. Não chega a ser nem mesmo um anti-herói. Ele ainda é o inimigo, o criminoso, o assassino frio e psicótico.

Coringa é o Caos! O personagem representa uma massa desassistida pelo Estado que não encontra voz política e, assim, acaba por capturar a multidão para a violência antissistema.

O perigo do longa não está na ideia de um maníaco ser enaltecido por seus atos violentos, mas sim por mostrar que todos nós somos parte de uma sociedade tão doente e afundada na lama que o maníaco acaba sendo glorificado justamente por ser aquilo que é. E isso não é ficção. É o reflexo do mundo: a arte imitando a vida.

Por mais que se identifique com o personagem, ninguém irá realmente se soltar das amarras do sistema e tornar-se um vilão de quadrinhos (nem mesmo fundar seu próprio Clube da Luta). Só o fato de se perceber em um mundo doente onde maníacos são idolatrados já é algo extremamente perigoso para todos os Thomas Wayne da vida real.

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O Neo-realismo do cinema: Uma análise de “Ele Está de Volta” sob o contexto de Comolli

Por Ana Carolina Resende Gomes
e João Victor Vilas Boas Militani

O limite entre a realidade e a ficção divide tenuamente as obras do cinema documentário. No capítulo “Sob o risco do real”, do livro “Ver e Poder”, Comolli (2006) trabalha esta relação do audiovisual com o real ali retratado, tão marcado pelo ponto de vista do produtor do filme. O autor diz querer acreditar na verdade mostrada pela câmera, mas desconfia das insinuações do realizador da obra. “O que é o documentário?” é a pergunta que se destaca no meio do texto.

Partindo desta questão, é possível questionar até onde é possível se produzir uma ficção para que esta retrate a realidade. Usar de atores para arrancar do personagem real suas mais profundas convicções, mesmo que seja baseado na fantasia, pode ser considerado um tipo de documentário. Seria essa a questão a ser levantada sobre o filme “Ele está de volta” (Eristwieder da, Alemanha, 2015). Nesta comédia mista de realidade e ficção, o próprio Hitler acorda – como num passe de mágica – no ano de 2014, no exato lugar onde teria se suicidado 70 anos antes. Ninguém acredita que ele seja o verdadeiro Hitler e o tratam como um comediante, caricato, ressuscitando velhos ideais nazistas como se fossem piadas. O trunfo do longa, no entanto, não é o enredo roteirizado, com atuações e cenários, mas sim os personagens reais com quem Hitler contracena. A partir de seu discurso eugênico e racista, o personagem de Hitler (fictício) consegue arrancar discursos semelhantes dos entrevistados (reais) – mostrando como o preconceito ainda se mantém enraizado na população alemã do século XXI.

Comolli constata que os personagens reais, ao serem filmados, atraem o espectador exatamente pelo fato de serem reais – por existirem mesmo fora da tela do cinema, por não fazerem parte do projeto original do filme, mas por compô-lo de forma imponderável ao longo de sua produção. Segundo o autor, é somente depois do uso que se dá a este personagem gravado, favorável ou não aos seus depoimentos – ou seja, somente após a edição das imagens – é que eles se tornarão “seres do cinema”. E conclui dizendo que, para o produtor, não é possível “avacalhar” com a mise-en-scène do que é real – não-ensaiado (COMOLLI, 2006, p.175).

No entanto, como deve ser tratado um filme como “Ele está de volta”? O personagem real é inserido na ficção e, portanto, torna-se parte dela, ao mesmo tempo em que suas declarações são reais. A ficção foi roteirizada e concebida antes do que viria a ser a participação espontânea do entrevistado real e este, portanto, deve ser considerado fictício, por ter sua participação “modelada” pelo projeto do filme?

“O cinema nasceu documentário e dele extraiu seus primeiros poderes” (COMOLLI, 2006, p.174). Esta afirmação do próprio Comolli retrata este misto de identidade do audiovisual. Foi a partir da retratação do real, realizada nas primeiras imagens gravadas pelos irmãos Lumière, que se deu início à toda a mágica do cinema. Em poucos anos, os Lumière (1862-1948) cederiam espaço a Meliés (1861-1938), que transformaria a realidade em fantasia. Pouco mais tarde, Flatherty (1884-1951) editaria a realidade de Nanook (Nanookofthe North, EUA, 1922) e daria pinceladas de ficção na vida real do esquimó. Era o embrião do que viria a ser o neo-realismo citado por Comolli.

Ainda neste contexto, Comolli disserta sobre a própria relação entre documentário e ficção. Este momento de neo-realismo (nouvelle vague) ele enfatiza que essa renovação das técnicas de encenação foi estimulada pela área do fotojornalismo, reportagem de guerra, cine-jornal e até mesmo com o cinema amador. “Hoje, a retomada das roteirizações ficcionais – esgotadas pela estandardização da telenovela – se dá mais uma vez a partir da experiência do documentário” (COMOLLI, 2006, p.170). Neste contexto, no filme podemos averiguar trechos da ficção que se misturam à realidade retratada, já que toda a trajetória do protagonista segue pelo roteiro, do despertar de Hitler, passando pelo momento em que ele conhece um cinegrafista em busca do sucesso, até deslanchar sua carreira e aproveitar da fama para reerguer os ideais nazistas. Para buscar essa verdade, no entanto, o longa não conta com personagens ensaiados, mas coloca Hitler nas ruas, conversando com pessoas reais, arrancando dessas, através de sua atuação impecável, a verdade racista que ainda permeia e Alemanha atual.

O ditador ascende à pop star do momento, ganha um programa de TV e realiza declarações polêmicas sobre as minorias, a religião e até mesmo o governo representado por uma mulher (Angela Merkel), em cenas ensaiadas que rendem aplausos e ovações do público real.

Partindo desta relação, o autor também caracteriza uma sensação de crer e duvidar da realidade apresentada pelo cinema. Entretanto, Comolli ainda garante que esse fator mantém o interesse do telespectador . “Meu prazer, minha curiosidade, minha necessidade de conhecer, meu desejo de saber são recolocados em movimento por essa dialética da crença e da dúvida” (COMOLLI, 2006, p. 171).

No filme, esse momento é bem nítido para o telespectador, já que só depois de um tempo é que se percebe a presença da realidade inserida na ficção. E é a partir disso que se começa a duvidar das próximas cenas. Não sabemos qual o limite da interpretação do ator e nem da verdade por trás das respostas dos entrevistados nas ruas. Esta limitação pode estar, por fim, muito interligada ao que o telespectador quer acreditar que seja real ou não, de acordo com suas próprias crenças e convicções.

“Ele está de volta” é apenas um exemplo dessa visão do espectador, guiada pelo roteiro, mas sustentada por ele próprio. Outros filmes usam da mesma técnica para confundir quem os assiste, embrulhando num mesmo pacote a realidade e a ficção. São os casos da comédia anglo-americana “Borat!” (2006) ou o brasileiro “Mercado de Notícias” (2014), que fundem fatos com encenações e confundem o real com a ficção.

COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. Ver e Poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário.Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006.

Ponte entre as escolhas

as-pontes-de-madisonQuando Clint Eastwood aparece em cena, o expectador já espera por um personagem viril, bruto, pronto a protagonizar cenas de tensão e violência. Mas quando o mesmo Eastwood assume sua cadeira de diretor, pode-se aguardar mais um ótimo drama, de viés extremamente humano, inquietante e comovente. Esta última característica é a que se sobrepõe em As Pontes de Madison (The Bridges of Madison, EUA, 1995), onde Francesca Johnson (Meryl Streep) e Robert Kincaid (o próprio Clint) protagonizam um rápido romance, criado pelo acaso e impedido pelas circunstâncias.

O roteiro de Richard LaGravanese (adaptado do livro de Robert James Waller) poderia ser apenas mais uma história romântica e adocicada, um filme de amor proibido, impedido de ir em frente por algum antagonista egoísta ou ciumento. No entanto, apesar do triângulo amoroso presente no longa, quem trama contra o amor dos protagonistas são suas próprias escolhas e as conjunturas da vida. E a sensibilidade de Eastwood na direção apenas reforça a profundidade do texto.

Ambientado na década de 1960, o longa narra a história póstuma de Francesca, uma dona de casa do interior de Iowa. Vinda da Itália após se casar com Richard (Jim Haynie), então um militar em campanha na Europa, a protagonista leva uma vida pacata na fazenda da família, devotada aos filhos e ao marido. Após sua morte, seus filhos, já adultos, são procurados por um advogado, que lhes entrega um comunicado de que a mãe queria ser cremada e um diário, onde Francesca revela o segredo que guardou por metade da vida.

as-pontes-de-madison03Ao lerem as confissões de Francesca, seus filhos descobrem seu envolvimento com Kincaid, um fotógrafo de passagem pelas redondezas para fotografar as famosas pontes cobertas do Condado de Madison. Durante a ausência da família, que viajara por quatro dias, a recatada dona de casa conhece, se apaixona e se entrega ao gentil fotógrafo que aparece em sua porta pedindo informações. Mesmo num espaço de tempo tão curto, a paixão arrebatadora desperta a indecisão de Francesca: fugir e se ver livre de sua prisão familiar ou ficar e cultivar a lembrança de um amor que não pôde viver.

Desenvolvida sobre a atuação impecável de Streep, que reveza momentos de timidez, atrevimento e receio, Francesca se mostra presa entre os desejos e sonhos primitivos de liberdade e amor e aqueles realistas e racionais, que ponderam sobre seus possíveis arrependimentos, sua gratidão ao marido e suas obrigações de mãe. Não apenas isso, sua preocupação com a opinião da sociedade, não consigo própria, mas com o julgamento que fariam de seu marido abandonado.

A moral construída no seio familiar, somada àquela da sociedade rural ao qual estava inserida, são as formadoras do caráter da personagem, que a colocam nesse impasse e acabam por guiar suas decisões: os impulsos primitivos são refreados pelos deveres com a família; o amor a um homem desconhecido é cerceado pelo amor aos filhos; e, mesmo insatisfeita com um casamento que lhe tirou da Europa para lhe colocar entre caipiras americanos, a compreensão diante de um marido que nunca lhe tratou mal. Privada de seus sonhos, os problemas de Francesca eram levar uma vida perfeita demais: um lugar tranquilo, em meio à rotina, o enfado e o tédio.

as-pontes-de-madison01Esta mesma moral perpassa as gerações e é refletida nos filhos da protagonista, que aos poucos leem seu diário e descobrem seu segredo. Apenas o desejo de ser cremada já lhes foi um primeiro golpe. Quebrar a tradição familiar e não ser enterrada ao lado do marido já era motivo suficiente para chocar seus herdeiros. Estar diante da história de traição lhes fora um choque ainda maior, impensável e incompreensível a princípio.

Do outro lado desse romance, o aventureiro Robert Kincaid se mostra mais que um simples sedutor. Diferente de Francesca, o personagem de Eastwood é livre, desbravador, corajoso o suficiente para se livrar daquilo que não o satisfaz. Mas ao mesmo tempo, de certa forma, infeliz com a solidão do trabalho que o obrigava a viajar com frequência. A face bruta de Clint Eastwood, seu olhar penetrante, sua expressão dura e decidida, dão ao longa a contraparte das frustrações de Francesca.

Mais uma vez Eastwood coloca os personagens de seus filmes vivendo os dramas de suas escolhas, num filme que não trata de amor, mas de sacrifícios.

Cinema

cinemaAbaixo estão listados todos os artigos relacionados a cinema. Alguns sobre filmes, outros sobre cineastas, atores e grandes personalidades do cinema.

A primeira lista se encontra em ordem alfabética pelo nome da personalidade. A segunda pelo título dos filmes em português.

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PERSONALIDADES DO CINEMA:

Hitchcock, Alfred – 15-05-2008

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FILMES:

2 Coelhos (Brasil, 2012) – 22-01-2012

2012 (idem, EUA, 2009) – 20-11-2009

Bastardos Inglórios (Inglórious Bastards, EUA, 2009) – 09-11-2009

Besouro (Brasil, 2009) – 09-11-2009

Efeito Borboleta (The Butterfly Effect – EUA – 2004) – 05-02-2009

Fim da Linha (Brasil – 2008) – 28-02-2008

Imoratais (Immortals – EUA – 2011) – 04-01-2012

Jumper (ídem – EUA – 2008) – 13-05-2008

Live! (EUA – 2007) – 20-02-2010

Mar Aberto (Open Water – EUA – 2004) – 25-01-2008

Ned Kelly (ídenm – Inglaterra, França, Austrália – 2003) – 29-07-2008

Rei da Pilantragem, O (Brasil, 2009) – 13-05-2009

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CINEMA INDEPENDENTE

Que Feira é Essa? (Brasil, 2009) – 22-08-2010