CARTA ABERTA: Minha eterna gratidão pela sua sobrevida

Após dois anos, eu sobrevivi à pandemia de covid-19 – que ainda não acabou, diga-se de passagem.

Sim, a palavra é essa: sobrevivi. Pois não posso dizer que vivi. A vida vai muito além dessa ininterrupta cautela ou desse sentimento de culpa a cada vez que se afrouxam os cuidados – por acidente ou cansaço.

Mas se sobrevivi, o mérito não é somente meu. Se me resguardei do vírus, devo minha gratidão a muitas pessoas que, assim como eu, se protegeram e se se mantiveram de pé – ainda que não tão rígidos.

Portanto, a você que usou máscaras e reclamou de quem não usava, muito obrigado!

A você que cuidou com esmero da higiene e fez do álcool e do sabão seus fiéis companheiros, muito obrigado!

A você que se isolou e enfrentou os demônios da solidão, muito obrigado!

A você que não pode se isolar, mas que diminuiu ao máximo os contatos com outras pessoas, saindo de casa somente para o estritamente necessário, muito obrigado!

A você que adiou seu próprio casamento, festa de formatura ou debutante, ou qualquer evento que lhe fosse importante, aguardando por um período mais seguro, muito obrigado!

A você que confiou em seus funcionários e lhes permitiu que trabalhassem de casa ou em turnos reduzidos, muito obrigado!

A você que, mesmo na dificuldade, aceitou fechar sua empresa ou comércio por compreensão e não por imposição, muito obrigado!

A você que não baixou as portas do seu meio de sustento, mas que tomou cuidados reais, sem fazer vista grossa para o cliente descuidado ou petulante, muito obrigado!

A você que se doou de alguma forma, agindo com caridade para ajudar aqueles que necessitaram de ajuda física, monetária ou psicológica, muito obrigado!

A você que se desentendeu com amigos e familiares, por eles acreditarem em mentiras, e a você que fez o possível para disseminar informações confiáveis e embasadas, muito obrigado!

E a você que duvidou, mas teve a hombridade de aceitar que estava errado, sem se sentir desonrado por mudar de opinião e guinar suas ações, muito obrigado!

A sua atitude – grande ou pequena, próxima ou distante – de alguma forma contribuiu para que eu encerrasse esse duro período de forma sadia, ainda que com a mente em frangalhos. Assim como tenho certeza que minhas próprias atitudes também corroboraram para que os 600 mil não fossem, talvez, 600 mil e um.

Se sua ansiedade ou depressão se tornaram tormentos maiores que o próprio medo do vírus, se sua solidão tornou-se uma sombra ainda maior que a da própria morte, essa é a hora de olhar para trás e se rejubilar. Pois o seu sacrifício psicológico e material não garantiu apenas a sua sobrevivência, mas a de muitos, realmente muitos!

Portanto orgulhe-se! Pois sobreviver – ainda que não seja viver – é melhor que perder a vida. E nenhum dos tormentos que lhe foram impostos jamais será pior que o peso na consciência por carregar em suas atitudes a culpa pela perda da vida alheia. Se sua mente e sua alma hoje são caóticas, orgulhe-se! Pois elas se martirizaram para salvar muitas vidas!

Os cuidados ainda permanecem, mas o reinício já é real. É chegada a hora do fim da sobrevivência e retomada da vivência!

João Victor Vilas Boas Militani – maio de 2022

(essa carta foi escrita originalmente ainda em julho de 2021, dez dias antes de tomar minha primeira dose de vacina. Estava me sentindo esperançoso, mas ainda não era a hora de publicá-la. Acredito que agora seja o tempo oportuno.)

70 Anos da TV Brasileira!

Valei-me, Santa Clara, que hoje sua afilhada brasileira completa 70 anos.

Desde 18 de setembro de 1950, apesar da idade avançada, a rainha das múltiplas faces mantém-se jovem em solo nacional. Referência mundial em teledramaturgia e vídeo-publicidade, sempre nas mãos dos magnatas, servindo aos poderosos, mostrando o que lhe convém e, vez por outra, alguma verdade.

Nasceu com nome de etnia indígena, mas suas raízes sempre foram americanas e europeias. Cresceu em glamour diante das telas brilhantes dos espectadores, mas precária e amadorísticas nos bastidores dos estúdios. Evoluiu darwinisticamente sob a bênção dos generais – aqueles mesmos que ela própria viria a ajudar na derrubada 20 anos depois. Saiu das torres para os cabos e dos cabos para o espaço. Foi tomada pelas crenças divinas de sacerdotes da riqueza mundana e do poder terreno. Chegou às mais distantes e recônditas florestas, onde casinhas isoladas passaram a prezar mais pela espinha de peixe do teto, do que o espinho do peixe no prato. Tornou-se digital, adaptou-se à internet e, apesar da grade ainda rígida, aprendeu a ser sob demanda, com seus programas disponíveis a qualquer hora e qualquer lugar. E ainda caminha por aí, poderosa entre poderosos (mais poderosa ainda entre os não poderosos).

Portanto Viva a Televisão Brasileira, dos Chateaubriand, dos Marinho e dos Abravanel, dos Saad, dos Bloch e do Reino de Deus!

(E eu completo 14 anos estudando essa maravilha que, apesar de ter sido criada lá fora, se tornou a mais brasileira das invenções – tirando futebol, claro).

Renato Russo: 60 anos do filho da revolução

As favelas e o senado continuam repletos de sujeiras, a constituição continua não sendo respeitada, mas o povo ainda acredita no futuro da nação. As crianças continuam aprendendo a roubar para vencer e o operário da fábrica ainda espera seu dia chegar, sempre em busca de um trabalho honesto em vez de escravidão. A estupidez humana ainda merece ser celebrada, sempre à espera da perfeição.

A poesia punk de Renato Russo, o líder da Legião Urbana, continua atual. Ela não cansa. Ela não morre. O pensamento do roqueiro continua vivo, intenso e ativo. Seu espírito ainda arde no coração de jovens e adultos, mesmo que seu corpo há muito tenha cedido ao cansaço do mundo.

A vida turbulenta do astro da música foi rápida, mas ainda hoje influencia as novas gerações, mesmo 24 anos depois de sua morte. Suas canções ainda estão entre as mais tocadas, mesmo que compostas há três ou quatro décadas. Foram 36 anos de vida, cerca de 20 anos de carreira e apenas dez de sucesso.

Quando fundou a Legião Urbana, em 1982, Renato não dava início apenas a mais uma banda de rock ‘n’ roll, mas um movimento que iria arrastar multidões. “A verdadeira Legião Urbana são vocês”, dizia ele para o público. E ele realmente acreditava nisso.

O grupo era mais que uma banda. Era um projeto muito bem arquitetado. Ao compor, Renato planejava sua revolução pessoal. Do alto do palco, ele colocava em prática os seus planos de combate ao sistema, contra a corrupção, a dor e maldade. A favor do amor e da justiça. Urbana Legio omnia vincit. Legião Urbana a tudo vence. Esse era o lema de seu grande projeto. Se o povo era a verdadeira legião, o povo era invencível, portanto.

Filho da revolução, futuro da nação. Renato acreditava que sua geração, os jovens subjugados pela ditadura militar, fariam a diferença no país do futuro. Antes de fundar a Legião, ainda no final da década de 1970, sob os bigodes dos generais, o adolescente punk questionava a plenos pulmões: que país é esse?

Sob a égide do movimento punk, ele questionou o capitalismo, se rebelou contra o governo ditatorial e compôs os versos ríspidos de sua primeira banda, o Aborto Elétrico. Foi em Brasília, a cidade sem história e sem cultura, que o adolescente rebelde deu início ao grande sonho: ser um rock star. Influenciar pessoas pela música e pela arte.

Ali, na nova capital, ele expôs o tédio, com um T bem grande, de uma geração sem identidade, que buscava viver como em uma propaganda de refrigerantes. Ali ele acusou os policiais de serem assassinos uniformizados, tarados que passam fogo no paí. Brasília foi o palco daqueles que Renato intitulou de Geração Coca-cola.

O grande fã de Bertrand Russell e Jean-Jacque Rousseau nasceu como Renato Manfredini Júnior, em 27 de março de 1960, no Rio de Janeiro. Mudou-se para Brasília aos 13 anos e se consolidou como o maior astro do Planalto Central. Hoje, Renato Russo completaria 60 anos de idade. Suas cinzas descansam sobre o jardim de Burle Marx, mas sua voz ainda ecoa pelo Brasil, seja para atormentar os palácios dos poderosos ou para acalentar os corações dos aflitos.

LEIA TAMBÉM:

A Geração Coca-cola Morreu
Análise da música “Geração Coca-cola”, da Legião Urbana.

O Primeiro Ato
Análise da música “Daniel na Cova dos Leões”, da Legião Urbana.

Índios Frustrados
Análise da música “‘Índios'”, da Legião Urbana.

O Neo-realismo do cinema: Uma análise de “Ele Está de Volta” sob o contexto de Comolli

Por Ana Carolina Resende Gomes
e João Victor Vilas Boas Militani

O limite entre a realidade e a ficção divide tenuamente as obras do cinema documentário. No capítulo “Sob o risco do real”, do livro “Ver e Poder”, Comolli (2006) trabalha esta relação do audiovisual com o real ali retratado, tão marcado pelo ponto de vista do produtor do filme. O autor diz querer acreditar na verdade mostrada pela câmera, mas desconfia das insinuações do realizador da obra. “O que é o documentário?” é a pergunta que se destaca no meio do texto.

Partindo desta questão, é possível questionar até onde é possível se produzir uma ficção para que esta retrate a realidade. Usar de atores para arrancar do personagem real suas mais profundas convicções, mesmo que seja baseado na fantasia, pode ser considerado um tipo de documentário. Seria essa a questão a ser levantada sobre o filme “Ele está de volta” (Eristwieder da, Alemanha, 2015). Nesta comédia mista de realidade e ficção, o próprio Hitler acorda – como num passe de mágica – no ano de 2014, no exato lugar onde teria se suicidado 70 anos antes. Ninguém acredita que ele seja o verdadeiro Hitler e o tratam como um comediante, caricato, ressuscitando velhos ideais nazistas como se fossem piadas. O trunfo do longa, no entanto, não é o enredo roteirizado, com atuações e cenários, mas sim os personagens reais com quem Hitler contracena. A partir de seu discurso eugênico e racista, o personagem de Hitler (fictício) consegue arrancar discursos semelhantes dos entrevistados (reais) – mostrando como o preconceito ainda se mantém enraizado na população alemã do século XXI.

Comolli constata que os personagens reais, ao serem filmados, atraem o espectador exatamente pelo fato de serem reais – por existirem mesmo fora da tela do cinema, por não fazerem parte do projeto original do filme, mas por compô-lo de forma imponderável ao longo de sua produção. Segundo o autor, é somente depois do uso que se dá a este personagem gravado, favorável ou não aos seus depoimentos – ou seja, somente após a edição das imagens – é que eles se tornarão “seres do cinema”. E conclui dizendo que, para o produtor, não é possível “avacalhar” com a mise-en-scène do que é real – não-ensaiado (COMOLLI, 2006, p.175).

No entanto, como deve ser tratado um filme como “Ele está de volta”? O personagem real é inserido na ficção e, portanto, torna-se parte dela, ao mesmo tempo em que suas declarações são reais. A ficção foi roteirizada e concebida antes do que viria a ser a participação espontânea do entrevistado real e este, portanto, deve ser considerado fictício, por ter sua participação “modelada” pelo projeto do filme?

“O cinema nasceu documentário e dele extraiu seus primeiros poderes” (COMOLLI, 2006, p.174). Esta afirmação do próprio Comolli retrata este misto de identidade do audiovisual. Foi a partir da retratação do real, realizada nas primeiras imagens gravadas pelos irmãos Lumière, que se deu início à toda a mágica do cinema. Em poucos anos, os Lumière (1862-1948) cederiam espaço a Meliés (1861-1938), que transformaria a realidade em fantasia. Pouco mais tarde, Flatherty (1884-1951) editaria a realidade de Nanook (Nanookofthe North, EUA, 1922) e daria pinceladas de ficção na vida real do esquimó. Era o embrião do que viria a ser o neo-realismo citado por Comolli.

Ainda neste contexto, Comolli disserta sobre a própria relação entre documentário e ficção. Este momento de neo-realismo (nouvelle vague) ele enfatiza que essa renovação das técnicas de encenação foi estimulada pela área do fotojornalismo, reportagem de guerra, cine-jornal e até mesmo com o cinema amador. “Hoje, a retomada das roteirizações ficcionais – esgotadas pela estandardização da telenovela – se dá mais uma vez a partir da experiência do documentário” (COMOLLI, 2006, p.170). Neste contexto, no filme podemos averiguar trechos da ficção que se misturam à realidade retratada, já que toda a trajetória do protagonista segue pelo roteiro, do despertar de Hitler, passando pelo momento em que ele conhece um cinegrafista em busca do sucesso, até deslanchar sua carreira e aproveitar da fama para reerguer os ideais nazistas. Para buscar essa verdade, no entanto, o longa não conta com personagens ensaiados, mas coloca Hitler nas ruas, conversando com pessoas reais, arrancando dessas, através de sua atuação impecável, a verdade racista que ainda permeia e Alemanha atual.

O ditador ascende à pop star do momento, ganha um programa de TV e realiza declarações polêmicas sobre as minorias, a religião e até mesmo o governo representado por uma mulher (Angela Merkel), em cenas ensaiadas que rendem aplausos e ovações do público real.

Partindo desta relação, o autor também caracteriza uma sensação de crer e duvidar da realidade apresentada pelo cinema. Entretanto, Comolli ainda garante que esse fator mantém o interesse do telespectador . “Meu prazer, minha curiosidade, minha necessidade de conhecer, meu desejo de saber são recolocados em movimento por essa dialética da crença e da dúvida” (COMOLLI, 2006, p. 171).

No filme, esse momento é bem nítido para o telespectador, já que só depois de um tempo é que se percebe a presença da realidade inserida na ficção. E é a partir disso que se começa a duvidar das próximas cenas. Não sabemos qual o limite da interpretação do ator e nem da verdade por trás das respostas dos entrevistados nas ruas. Esta limitação pode estar, por fim, muito interligada ao que o telespectador quer acreditar que seja real ou não, de acordo com suas próprias crenças e convicções.

“Ele está de volta” é apenas um exemplo dessa visão do espectador, guiada pelo roteiro, mas sustentada por ele próprio. Outros filmes usam da mesma técnica para confundir quem os assiste, embrulhando num mesmo pacote a realidade e a ficção. São os casos da comédia anglo-americana “Borat!” (2006) ou o brasileiro “Mercado de Notícias” (2014), que fundem fatos com encenações e confundem o real com a ficção.

COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. Ver e Poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário.Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006.

Artigos

artigosAqui se encontram todos os artigos opinativos de minha autoria que não se encaixam nas outras categorias. Eles tratam dos mais diversos assuntos e estão dispostos em ordem de publicação:

.

.

31-01-2012 – O Boicote à  Globo e os Revolucionários de Mesa de Bar
A TV não é culpada por tudo! 

25-05-2009 – Dia do Orgulho Nerd
Nós dominaremos o mundo!!!

08-08-2008 – O Dragão Despertou
Artigo sobre as Olimpíadas de Pequim, na China, em 2008.