A Metalinguagem de ‘Pássaro Livre’

A liberdade é uma dádiva conquistada com sacrifícios, mas para entendê-la em todo o seu significado, é preciso, antes, perdê-la por completo. É sob essa premissa que se desenvolve Pássaro Livre, o romance de estréia da jornalista Déborah Vieira, publicado de forma independente através do Clube de Autores.

Não se engane, porém, imaginando que o livro se trata da liberdade física, de personagens enclausurados por trás de barras de ferro. O conceito ali abordado vai muito além dessa concepção, trabalhando aquela liberdade de pensamentos e escolhas: uma clausura criada a partir das relações humanas.

Anne é uma jovem escritora, formada em letras e sem muitas perspectivas nesta área profissional. Há oito anos namorando com Daniel e recentemente morando juntos em São Paulo, ela vive de seus sonhos mais que de sua realidade. Apesar de amar o namorado, vê-se frustrada em uma relacionamento estagnado; com um diploma nas mãos, ainda mostra-se incapaz de conseguir um emprego; mesmo com o forte desejo de ser reconhecida como escritora, ainda se mostra reticente e desencorajada com seus textos: sua vida, portanto, é uma sequência de expectativas e projeções de um futuro promissor, barrado por um presente desfavorável.

Para fugir da frustrante realidade em que se encontra, Anne tece fantasias com o grande ídolo de sua vida, o homem que ela mais admira e deseja: Eric West, um astro do cinema Hollywoodiano. Os filmes de West são o passatempo e o remédio favoritos da protagonista, como uma meta inalcansável a qual ela nem sequer se dedicar a atingir.

No entanto a jovem desempregada, perdida na maior cidade do país e entristecida com o descaso do namorado, vê-se, de repente, no braços do grande ator do cinema. Tudo parece um sonho, mas Anne parece estar realmente lá, vivendo na Califórnia como uma escritora famosa, que terá seu primeiro best-seller adaptado para as telas de todo o mundo. O ator principal deste longa-metragem? Seu novo namorado: Eric West!

Com um texto leve e personagens cativantes, Déborah Vieira narra uma história complexa, com três diferentes pontos de vista. O mesmo enredo é alternado a cada capítulo, sendo, cada qual, descrito sob o ponto de vista de um personagem diferente. O que a princípio parece confuso, torna-se aos poucos uma maneira de identificar as intenções e se aprofundar na mente de cada um deles: o empresário amoroso, o ator interesseiro e a escritora sonhadora.

Através dessas visões, a autora trabalha a liberdade em seu conceito mais amplo. É através das escolhas da protagonista, Anne, que o livro apresenta seus valores de vida e felicidade, ponderando entre sucesso profissional e pessoal.

É possível ainda perceber uma metalinguagem na obra de Déborah, ligando a ficção à realidade da autora. Se aqui cabe uma especulação, é possível traçar paralelos: tanto autora quanto personagem são recém-formadas em cursos que guardam certas semelhanças entre si (jornalismo e Letras), ambas em busca do sonho do primeiro livro e na expectativa do sucesso. Não um romance auto-biográfico, mas o mundo literário servindo de tema para si próprio.

Como expõe Sérgio Sá em seu livro A Reinvenção do Escritor, há algum tempo a literatura latino-americana vem se dedicando cada vez mais a si mesma – afinal, em um mundo de imagens e sons, as dificuldades em se trabalhar com texto são tão grandes e a influência do cinema e da TV são tão fortes que acabam por se tornar o tema principal dos autores deste canto do mundo. Em Pássaro Livre, Déborah Vieira não fugiu à essa regra.

O Templo dos Ventos: estréia com pé direito

Um mistério envolve O Templo dos Ventos, o romance de estréia de Marcelo F. Zaniolo, e o primeiro da Trilogia dos Pássaros: porque o mundo encontra-se submerso? O que exatamente aconteceu no planeta e há quanto tempo isso ocorreu? Uma grande inundação, aparentemente de proporções globais, apagou toda a História da humanidade e deixou poucos sobreviventes, cujas tradições orais, com o tempo, deixaram esquecer todo conhecimento adquirido pela sociedade ao longo de tantos séculos. A modernidade há muito está perdida metros abaixo do oceano.

Mas este é apenas o pano de fundo do romance, a paisagem geral criada por Zaniolo, em um misto de fantasia e enredo pós-apocalíptico.

Com uma narrativa ágil e descrições marcantes, o autor inicia sua história com a descoberta de um garoto encontrado morto, supostamente assassinado. O fato desperta a atenção dos moradores da Aldeia – um pequeno assentamento de sobreviventes, no alto da última montanha do mundo. Gavin, irmão da vítima, deixa o local em busca de vingança e desaparece na mata.

O possível homicídio, no entanto, não é o único motivador da história. Enquanto os demais moradores do lugar se organizam para enviar um grupo de busca, uma grande águia branca surge nos céus e, de maneira inexplicável, consegue se comunicar com Átila, o mais forte dentre os guerreiros locais. O pássaro viera para cobrar uma dívida, não com ele, mas com todos os poucos remanescentes da Grande Inundação. A humanidade não sabia (ou não lembrava), mas devia sua sobrevivência às aves.

É a partir desse enredo e com um misterioso e catastrófico pano de fundo, que se inicia a jornada de Noah, Átila, Deni, Gavin e a misteriosa Zoe. Os cinco protagonistas, entre encontros e desencontros, percorrem as terras inabitadas da montanha, não apenas em busca de vingança, mas também à procura de algo que explique como alguns deles, de repente, passaram a se comunicar com os pássaros.

Envolvendo mistério e aventura muito bem equilibrados ao longo do texto, O Templo dos Ventos é um romance infanto-juvenil empolgante, capaz de despertar a curiosidade e envolver os leitores com um enredo original e um mundo de fantasia que, apesar de beber em muitas fontes, não copia ou arremeda nenhuma delas. Zaniolo traz um cenário verossímil, crível, de uma montanha solitária em meio ao oceano sem fim. O panorama de um mundo limitado, que vai sendo descoberto aos poucos pelos aventureiros de sua história. Mas que, diferente do que se possa imaginar, passa cada vez mais a sensação de encarceramento a medida que os personagens descobrem novas terras da grande ilha – mesmo sendo um espaço gigantesco e inexplorado, há sempre a presença do mar como um limite intransponível.

Se há um ponto realmente forte no romance, ele está nos personagens e seus arcos evolutivos – principalmente em Noah, o jovem narrador da história.

“Um guerreiro, um sonhador e o filho de um contador de histórias. Nossa aventura parecia promissora.” Some ainda os outros dois que entrarão posteriormente na história e se terá a trupe completa, cada qual com sua respectiva ave. Os cinco protagonistas não são apresentados individualmente ao leitor, nem mesmo são definidos em descrições. Suas personalidades vão sendo desvendadas ao longo da trama, em conjunto, através de ações e diálogos. Como a história é narrada por um deles, os dramas e pensamentos dos demais personagens se tornam um mistério para o leitor, mas suas atitudes e falas, registradas por Noah ao longo da aventura, aos poucos vão expondo a real personalidade de cada um.

Mas não se pode ignorar o narrador, de maneira alguma. O arco evolutivo de Noah é o maior trunfo de O Templo dos Ventos: inicialmente vendo-se apenas como uma sombra do irmão mais novo, um peso a ser carregado pela comitiva, com o passar do tempo Noah torna-se mais auto-confiante e seus dramas pessoais envolvem com facilidade o leitor. Seu despreparo para a aventura o coloca em pé de igualdade com o leitor juvenil e é impossível não se identificar com sua trajetória. Sua responsabilidade e suas prudência e sensatez o tornam um exemplar e carismático herói – tornando-se  por fim um total contraponto ao inimigo a ser enfrentado.

Este, talvez, seja um dos poucos defeitos da história: um mundo deveras maniqueísta e sem surpresas com relação ao caráter de cada um dos personagens. A trama que envolve as aves e acaba por se mostrar a principal motivação da história também se mostra vaga a maior parte do tempo, deixando sem explicações muitos dos fatos que ocorrem ao longo do romance. Algo perdoável, já que o livro termina em aberto, deixando mistérios a serem resolvidos nos próximos dois volumes que ainda virão.

Ao ler O Templo dos Ventos, não espere uma história grandiosa, cheia de diálogos marcantes, mas uma aventura leve e divertida, que irã despertar a curiosidade para um novo e original mundo de fantasia, além de ensinar que, as vezes, os que parecem ser seus piores defeitos, na verdade podem ser suas melhores qualidades.

Pruuu.

Ponte entre as escolhas

as-pontes-de-madisonQuando Clint Eastwood aparece em cena, o expectador já espera por um personagem viril, bruto, pronto a protagonizar cenas de tensão e violência. Mas quando o mesmo Eastwood assume sua cadeira de diretor, pode-se aguardar mais um ótimo drama, de viés extremamente humano, inquietante e comovente. Esta última característica é a que se sobrepõe em As Pontes de Madison (The Bridges of Madison, EUA, 1995), onde Francesca Johnson (Meryl Streep) e Robert Kincaid (o próprio Clint) protagonizam um rápido romance, criado pelo acaso e impedido pelas circunstâncias.

O roteiro de Richard LaGravanese (adaptado do livro de Robert James Waller) poderia ser apenas mais uma história romântica e adocicada, um filme de amor proibido, impedido de ir em frente por algum antagonista egoísta ou ciumento. No entanto, apesar do triângulo amoroso presente no longa, quem trama contra o amor dos protagonistas são suas próprias escolhas e as conjunturas da vida. E a sensibilidade de Eastwood na direção apenas reforça a profundidade do texto.

Ambientado na década de 1960, o longa narra a história póstuma de Francesca, uma dona de casa do interior de Iowa. Vinda da Itália após se casar com Richard (Jim Haynie), então um militar em campanha na Europa, a protagonista leva uma vida pacata na fazenda da família, devotada aos filhos e ao marido. Após sua morte, seus filhos, já adultos, são procurados por um advogado, que lhes entrega um comunicado de que a mãe queria ser cremada e um diário, onde Francesca revela o segredo que guardou por metade da vida.

as-pontes-de-madison03Ao lerem as confissões de Francesca, seus filhos descobrem seu envolvimento com Kincaid, um fotógrafo de passagem pelas redondezas para fotografar as famosas pontes cobertas do Condado de Madison. Durante a ausência da família, que viajara por quatro dias, a recatada dona de casa conhece, se apaixona e se entrega ao gentil fotógrafo que aparece em sua porta pedindo informações. Mesmo num espaço de tempo tão curto, a paixão arrebatadora desperta a indecisão de Francesca: fugir e se ver livre de sua prisão familiar ou ficar e cultivar a lembrança de um amor que não pôde viver.

Desenvolvida sobre a atuação impecável de Streep, que reveza momentos de timidez, atrevimento e receio, Francesca se mostra presa entre os desejos e sonhos primitivos de liberdade e amor e aqueles realistas e racionais, que ponderam sobre seus possíveis arrependimentos, sua gratidão ao marido e suas obrigações de mãe. Não apenas isso, sua preocupação com a opinião da sociedade, não consigo própria, mas com o julgamento que fariam de seu marido abandonado.

A moral construída no seio familiar, somada àquela da sociedade rural ao qual estava inserida, são as formadoras do caráter da personagem, que a colocam nesse impasse e acabam por guiar suas decisões: os impulsos primitivos são refreados pelos deveres com a família; o amor a um homem desconhecido é cerceado pelo amor aos filhos; e, mesmo insatisfeita com um casamento que lhe tirou da Europa para lhe colocar entre caipiras americanos, a compreensão diante de um marido que nunca lhe tratou mal. Privada de seus sonhos, os problemas de Francesca eram levar uma vida perfeita demais: um lugar tranquilo, em meio à rotina, o enfado e o tédio.

as-pontes-de-madison01Esta mesma moral perpassa as gerações e é refletida nos filhos da protagonista, que aos poucos leem seu diário e descobrem seu segredo. Apenas o desejo de ser cremada já lhes foi um primeiro golpe. Quebrar a tradição familiar e não ser enterrada ao lado do marido já era motivo suficiente para chocar seus herdeiros. Estar diante da história de traição lhes fora um choque ainda maior, impensável e incompreensível a princípio.

Do outro lado desse romance, o aventureiro Robert Kincaid se mostra mais que um simples sedutor. Diferente de Francesca, o personagem de Eastwood é livre, desbravador, corajoso o suficiente para se livrar daquilo que não o satisfaz. Mas ao mesmo tempo, de certa forma, infeliz com a solidão do trabalho que o obrigava a viajar com frequência. A face bruta de Clint Eastwood, seu olhar penetrante, sua expressão dura e decidida, dão ao longa a contraparte das frustrações de Francesca.

Mais uma vez Eastwood coloca os personagens de seus filmes vivendo os dramas de suas escolhas, num filme que não trata de amor, mas de sacrifícios.

Orgulho e Obsessão

Na capa do volume de “O Morro dos Ventos Uivantes” que li, existe, sobre um selo vermelho, os seguintes dizeres: “O livro favorito de Bella e Edward da série Crepúsculo”. Só isso bastaria para espantar qualquer leitor sensato. Bem recomendado, porém, tive o prazer de lê-lo e posso dizer: que susto tomarão as menininhas desavisadas se pensam que encontrarão nele mais uma perfeita historinha de amor.

O romance escrito pela poetisa inglesa Emily Brontë, ainda na primeira metade do século XIX, é a única publicação em prosa da autora, que viveu apenas 30 anos – entre 1818 e 1848. No período da publicação, O Morro recebeu várias críticas desfavoráveis, mas logo ascendeu aos clássicos da literatura inglesa, devido à riqueza de seus personagens e os significados escondidos por trás de cada um deles.

O livro narra não só as histórias de duas famílias de propriedades vizinhas, os Ernshaw e os Linton, como também a devastadora e obsessiva paixão entre Heathcliff e Catherine.

Heathcliff é um personagem sem passado. Trazido para a casa dos Ernshaw ainda na infância, ali conhece aquela que viria ser sua melhor amiga e, mais tarde, seu grande amor, a bela Catherine. Criados como irmãos e isolados do mundo na fazenda do Morro dos Ventos Uivantes, o casal de jovens se apaixona, mas são separados pela própria vida e pelos preceitos que os distinguem. Apesar dos fortes sentimentos em comum, Catherine era uma dama culta, de família tradicional e personalidade forte; já o rapaz não tinha ascendência, era visto como um bruto e tinha um orgulho e uma personalidade ainda maiores que os de sua amada. Dessa forma, o próprio modo de ser de ambos acabou por separá-los, porém não foi capaz de destruir o grande amor que os unia.

Ralph Fienes como Heathcliff

Privado de sua amada pelo simples orgulho de ambos, Heathcliff foge para ganhar a vida sozinho e, anos depois, volta rico, ostentando a aparência de um perfeito cavalheiro. Para sua decepção, no entanto, sua amada Cathy já havia se casado com o vizinho Edgar Linton. Restava a Heathcliff não só conformar-se ou mesmo reconquistá-la, como também cumprir seus planos de vingança contra aqueles que o acolheram e o humilharam para, por fim, consumar sua obsessão por Catherine.

Falando dessa forma, parece que o livro se remete a mais um tradicional triângulo amoroso. Não se enganem, pois daí em diante (ou mesmo já desde o início), a narrativa de Emily Brontë envereda pelo o que há de pior numa história de amor: obsessão, ganância, ciúmes, rancor, uma idolatria obsessiva e mortal e, por fim, a vingança fria e premeditada.

Na primeira parte do romance, Catherine parece ser o ponto central. Apesar de sua personalidade forte, se mostra incompleta ou, melhor dizendo, indecisa: presa entre os desejos e sonhos primitivos e aqueles realistas e racionais dos quais dependem seu futuro. É diante dessa bifurcação que Catherine rejeita Heathcliff, suprimindo suas mais bárbaras aspirações, e se volta para Edgar. É neste que, herdeiro de grandes propriedades e títulos de nobreza, ela avista seu futuro promissor; optando pela segurança em detrimento da aventura. No entanto é impossível para qualquer pessoa viver sem contrabalançar aquilo que os chineses chamam de Yin e Yang ou – afinal o assunto aqui é literatura inglesa – o que Stevenson chamou de Jekyll e Hyde: os lados racional e primitivo de cada um de nós.

Fiennes e Binoche como Heathcliff e Cathy

A vida de Catherine com Linton acaba por se tornar perfeita demais, enfadonha e entediante, cercada de empregados, livros e excesso de comodidade. Ela se torna uma rainha dentro do lar, se acomoda e até perde boa parte de sua petulância. Com o retorno de Heathcliff, tantos anos depois, Cathy, mais do que seu antigo amor, redescobre a vivacidade e as aventuras da infância e da juventude. Mais uma vez ela tenta equilibrar sua existência, fazendo, em vão, com que Edgar aceite Heathcliff em suas vidas. E mais uma vez ela tem sua personalidade bifurcada. Dessa nova dúvida, surge morte e renascimento: a renovação da vida no Morro dos Ventos Uivantes.

Se a interpretação acima dá a Catherine certa importância, engana-se quem pensa ser ela a mocinha a ser salva e amada. Não mesmo. Não existem heróis ou mocinhos na história. Os personagens que vivem no Morro dos Ventos Uivantes são apenas humanos. Todos crescem e evoluem no decorrer das páginas e não existe um sequer que o leitor não consiga odiar. Pois sim, todas aquelas personalidades – do mais baixo empregado ao mais rico patrão, passando até pelas crianças – são tão fortes e cheias de defeitos que não fogem ao ódio do leitor. Até mesmo os princípios religiosos, os mandamentos de Deus, aqui personificados e entoados às ladainhas pelo fanático Joseph, são apresentados com certa parcela de culpa sobre as mazelas dessa fatídica história. Passa-se por fim a adorar todos pelo simples fato de não se identificar com a podridão de nenhum deles. Nem mesmo a narradora (o livro é contado em primeira pessoa pela governanta Ellen Dean) consegue fugir aos defeitos humanos, com seus atos irresponsáveis, suas decisões tomadas por excesso de compaixão e, muitas vezes, por medo. Esta última, talvez, a grande culpada de toda a tragédia do livro.

Melhor nem estender muito sobre os personagens, pois cada um mereceria um artigo à parte, tal suas riquezas e unicidades.

Além das qualidades particulares desta obra de Brontë, que a torna singular e incomparável, existem ainda outros atributos que, apesar de comuns em muitos livros, a enriquecem ainda mais: o testemunho de uma época. Estão ali presentes não só as belas paisagens, frias e cinzentas do norte da Inglaterra, bem como também todos os costumes da sociedade rural inglesa do século XIX; como um título de nobreza pode separar com abismos duas classes igualmente ricas; a importância de um sangue tradicional; a grande fenda que separa os cultos dos iletrados, impedindo até mesmo uma simples amizade. E muitas outras peculiaridades da Era Pré-Vitoriana.

Capa do DVD da adaptação de 1992

Há ainda várias características comuns ao período gótico. A começar pelo próprio Heathcliff, com sua pele escura e seus traços de cigano e os mistérios não revelados de sua vida. E, como não poderia faltar, existem ainda fantasmas e vampiros, apresentados, porém, em sonhos e delírios durante as doenças febris e aflições dos protagonistas.

Não há como negar que Emily Brontë construiu em O Morro dos Ventos Uivantes uma belíssima obra de leves traços góticos que envolve mais terror e sofrimento, do que afeição e alegrias. Um caso de orgulho e obsessão que, confundido com amor, foi capaz de vencer as barreiras da morte. Tanto que, em 1957, o escritor francês Georges Bataille o classificou como “um dos mais belos livros da literatura de todos os tempos”. Enquanto o crítico americano Harold Bloom sentenciou, em 2002: “Uma obra de uma grandiosidade solitária”.

Com toda a certeza, um disparate este livro ser citado tão fora de contexto na obra de Stepheny Meyer. Mais um motivo – bem forte – para eu criticar Crepúsculo.

Curiosidade: o livro teve várias adaptações para o cinema. A mais recente delas é a do diretor Peter Kosminsky, de 1992, com Ralph Fiennes e Juliette Binoche.

Título: O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heigths) Autor: Emily Brontë País: Inglaterra Publicação Original: 1947 Publicação Lida: Editora Lua de Papel, 2009

Somos Monstros

Frankenstein

Mary Shelley (1797-1851)Tudo começou com um desafio feito a Mary Shelley (1797-1851), então uma jovem de 21 anos, por Lord Byron. Na época, 1816, Byron propôs a Mary e seu marido que escrevessem um conto de terror, uma maneira de passar o tempo, já que suas férias estavam sendo consumidas intediantemente pelo mau tempo. Mary foi a última a dar início ao seu conto, que acabou baseado em um pesadelo que teve numa daquelas noites de chuva. E, dentre todos, o conto de Shelley foi o que mais surpreendeu e arrepiou. Insentivada a continuar, Mary Shelley desenvolveu ainda mais sua história e transformou-a em um dos mais conhecidos e celebrados livros da História: Frankenstein.

Victor Frankenstein era um jovem curioso, com sede de conhecimento, apaixonado pela ciência, intrigado com os segredos da vida e louco para deixar sua marca no mundo. Havia aprendido sozinho em casa sobre as fantasias da Alquimia, no entanto apenas na universidade ele foi descobrir que toda sua bagagem de conhecimento estava ultrapassada há muito. Acabou se tornando um aluno exemplar, dedicado à química e à biologia. Foi assim que, sozinho em seu laboratório em Ingolstadt, Victor deu início à sua criação, misturando seus conhecimentos teóricos de fisiologia e filosofia natural com princípios de mecânica, decido a descobrir se o princípio que mantinha animado o corpo poderia pernecer mesmo após a morte. Como Victor fez isso, todos já sabemos: deu vida a uma criatura formada por partes de cadáveres, de tamanho descomunal (cerca de 2,5m de altura) e aparência horripilante. E é aqui que dá-se início ao grande trunfo da história!

Ao despertar da Criatura, Frankenstein acaba por cair na realidade vendo como era realmente feia sua criação, com seus membros desproporcionais, seu olhos aquosos e amarelos, incompleta a ponto de seus tecidos nem sequer cobrirem todo o corpo, deixando à mostra músculos e ossos. Desesperado e com medo, arrependido de sua audácia, Victor abandona sua Criatura, decaindo num súbito acesso de náusea e lucidez.

Frankenstein por Robert De NiroPobre Criatura, um ser vazio de conhecimentos, ignorante em relação ao convívio social, solto num mundo de pessoas preconceituosas e indiferentes. A personificação perfeita da famosa teoria de Rousseau, a do “bom selvagem”, que diz que todo o homem nasce “puro” e é corrompido pela sociedade violenta, viciosa e materialista. Quem lê a história de Frankenstein espera encontrar terror, suspense e aventura, onde um monstro estaria a solta para destruir e matar. No entanto descobre um mundo onde nós humanos somos totalmente repugnantes e no qual o único ser que realmente tem algum valor é o monstro excluído por todos. Poucos livros retratam tão bem a indiferença humana e a nossa mania de dar mais valor às aparências do que aos sentimentos, carater e virtudes.

Mary Shelley escreveu uma autêntica obra-prima da literatura universal, um romance capaz de despertar no leitor a pena e a compaixão por um monstro e a repugnância de nossa própria raça. Uma lição que ainda não foi aprendida, mesmo depois de quase 200 anos.

Ficha Técnica

Título: Frankestein (Frankenstein; or the Modern Prometheus)
Autor: Mary Shalley
País: Inglaterra
Publicação Original: 1818
Publicação Lida: Martin Claret Editora, 2001