O Retrato da Vaidade Humana

Alguns livros são bons devido às suas histórias, com narrativas bem feitas e tramas circulares e bem amarradas. Seria o caso de Dom Casmurro e sua trajetória de vida, ou mesmo os mistérios da escritora Agatha Christie, indecifráveis até a última página. Difícil é encontrar livros que valem a pena apenas por seus personagens peculiares e inteligentes, que têm mais valor que a história que vivem. Como, por exemplo, Policarpo Quaresma e seu ufanismo, Sherlock Holmes e suas deduções ou mesmo o louco Dom Quixote que, para fugir do ócio, criou do nada o seu próprio mundo.

Entretanto, mais raro ainda, é encontrar essas duas qualidades em uma única obra. Qualidades tais que Oscar Wilde soube unir com prestígio em O Retrato de Dorian Gray, um ensaio crítico e inteligente sobre o pecado da vaidade e a adoração pelo belo, discorrendo por temas como a imortalidade, a perfeição e a eterna juventude, além de outras impossibilidades. E como se um único personagem fosse pouco, Wilde nos brinda logo com três! Três grandes personalidades que envolvem o leitor numa história fantástica pela alta sociedade londrina do fim do séc. XIX.

Os dois primeiros personagens apresentados são Basil Hallward e Lorde Henry. O primeiro é um pintor, um artista moralmente correto, que vê em Dorian Gray, o protagonista, sua maior fonte de inspiração, como se os dois vivessem um “romance artístico”, um romance entre a arte e aquilo que a inspira. E é ali, no ateliê de Basil, que Lorde Henry é apresentado pela primeira vez a Dorian.

Henry, o mais marcante personagem do romance, é completamente o contrário de Basil. É um jovem Lorde, na faixa dos seus 30 anos, facinado pela vida e louco para testar algumas mentes inferiores a dele. Sempre pronto a falar o que lhe vier à mente, Lorde Henry é quem conduz toda a história. São deles as principais tiradas, as dissertações e os diálogos mais perniciosos. E logo no primeiro capítulo, ele já fascina o leitor com frase fortes como:

“Ser natural é simplesmente uma pose, a mais mais irritante que conheço.”

“Consciência e covardia são, na verdade, a mesma coisa. Consciência é apenas a razão social da firma”

“Escolho meus amigos pelo bom aspécto; os conhecidos, pelo bom gênio; e os inimigos, pela inteligência. Não há necessitade de muito escrúpulo na escolha dos desafetos.”

Já Dorian… Dorian Gray é completamente o contrário de ambos. É um rapaz jovem e ingênuo, porém um Adonis ou, se melhor comparado, um Narciso. Belo como ninguém, e ingênuo a ponto de não compreender o poder de sua própria beleza, Dorian é facilmente influenciado pela mente afiada de Lorde Henry, que o incita com sua imoralidade, sua língua afiada, seus comentários sádicos e suas deduções machistas. Dessa forma, de um espírito simples, Dorian se torna malicioso, se envaidece e torna-se um amante de si mesmo. Cede, mesmo que secretamente, aos prazeres de uma vida desregrada ao mesmo tempo em que mantém sua posição social: uma dupla identidade que torna tudo ainda mais prazeroso para o rapaz.

Dorian Gray acaba por escorregar cada vez mais para o fundo do abismo, sem apoios para os pés. Chega ao ponto de não conseguir uma redenção, pois mesmo quando tenta mudar de vida, descobre fazê-lo apenas pelo prazer pelo novo, pelo amor à arte de viver. Porém o mais interessante, o brilhantismo da obra, não está na queda em si, mas na possibilidade de Dorian realmente ver (sim, ver) a corrupção de sua alma a cada ato desonrado que comete; ver, diante de seus olhos, as marcas do tempo e do pecado marcadas em sua própria face, sem, entretanto, perder todo o explendor, beleza e virilidade da juventude, mesmo após 20 anos.

Quando foi publicado, em 1890, o romance chocou a hipócrita sociedade londrina por mostrar, sem máscaras e sem medo, a verdadeira face da Londres vitoriana. A crítica caiu pesadamente sobre o romance e fechou ainda mais o cerco quando o escândalo de suas páginas pareceu tomar conta da vida social do autor, quando suas relações com Lorde Alfred Douglas vieram a público (o que lhe rendeu, mais tarde, uma condenação de dois anos de trabalho forçado).

Para amenizar a situação, na segunda edição do romance, publicada um ano depois, Wilde incluiu, além de 6 novos capítulos, um prefácio que desencorajava qualquer um a procurar entre seu círculo de amizade os personagens de seu livro: “O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida.” E deixa claro que “não existem livros morais ou imorais. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo!”

O Retrato de Dorian Gray, com seu cinismo, seu humor corrosivo e sua inteligência sádica, é genial! Não só pela criatividade ou pelas frases ácidas de Lorde Henry, mas por se manter atual, mesmo após cem anos de sua publicação. Pode-se não gostar de Wilde? Sim, claro, isso é até frequente, mas não por culpa dele!

Ficha Técnica

Título: O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray)
Autor: Oscar Wilde
País: Inglaterra
Publicação Original: 1891
Publicação Lida: Martin Claret Editora, 1999

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Para uma maior espectativa do novo leitor, reproduzo abaixo o prefácio completo e alguma frases saborosamente ditas por Lorde Henry. Divirtam-se!!!

“O artista é o criado de coisas belas.

Revelar a arte e encobrir o artista é a razão de ser da arte. O crítico é aquele que é capaz de exprimir de modo distinto e com material diferente a sua impressão das coisas belas.

A forma de crítica mais elevada, como a mais baixa, é um gênero de auto-biografia.

Os que só vêem intenções vis nas coisas belas são depravados destituídos de encanto. É um defeito.

Os que admitem intenções belas nas cosias belas são espíritos cultos. Para estes há esperança. São os eleitos, para quem o belo significa unicamente Beleza.

Não existe livro moral nem imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo.

A aversão do século XIX ao Realismo é a fúria de Calibã ao reconhecer sua imagem num espelho.

A antipatia que o século XIX vota ao Romantismo é o despeito de Calibã por não ver seu rosto num espelho.

A vida moral do homem faz parte do objeto do artista. Mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um instrumento imperfeito. Nenhum artista pretende provar o que quer que seja. Todas as coisas verdadeiras pode ser provadas.

Artista algum tem referências éticas. Uma preferência moral em um artista, é imperdoável maneirismo de estilo.

Não há artista doentio. O artista pode exprimir tudo.

O pensamento e a linguagem são para o artista instrumentos de uma arte.

Vício e virtude representam para o artista a matéria-prima e sua arte. Do ponto de vista da forma, o protótipo das artes é o do músico. Do ponto de vista do sentimento, é o talento do ator.

Toda arte é ao mesmo tempo aparência e símbolo.

Os que penetram por baixo dessa aparência, o fazem por sua conta e risco.

Os que decifram o símbolo também o fazem por sua conta e risco. A arte reflete o espectador e não a vida.

A diversidade de opiniões a cerca de uma obra de arte evidencia que essa obra é nova, complexa e vital.

Quando a crítica discorda, o artista está de acordo consigo mesmo.

Podemos perdoar a um homem a criação de uma coisa útil, contanto que ele não a admire. A única justificativa para a criação de uma coisa inútil é que ela seja admirada constantemente.

Toda arte é absolutamente inútil.”

Oscar Wilde

E agora algumas citações vindas diratamente da boca de Lorde Henry Wotton:

“Sou capaz de acreditar em tudo, desde que seja coisa absolutamente incrível.”

“Não dou muito apreço a irmãos. Meu irmão mais velho não quer morrer e os mais novos parecem não fazer outra coisa.”

“O valor de uma idéia nada tem a ver com com a sinceridade do indivíduo que a exprime. Na realidade, a maior probabilidade é de que, quanto menos sincero for o indivíduo, mais puramente intelectual deva ser a idéia, porquanto não influciam os interesses, nem os desejos, nem os preconceitos desse indivíduo.”

“Os que são fiéis conhecem só o lado trivial do amor. A infidelidade é que sabe das tragédias do amor.”

“Boa influência é coisa que não existe […] Toda influência é imoral.”

“Influenciar uma pessoa é emprestar-lhe a nossa alma. Essa pessoa deixa de ter idéia próprias, de vibrar com as suas paixões naturais. As suas qualidades não são verdadeiras. Os seus pecados […] vêm-lhe de outrem. Essa pessoa torna-se o eco da música de outra pessoa, intérprete de um papel que não foi escrito para ela. A finalidade da vida é para cada um de nós o aperfeiçoamento, a realização plena da nossa personalidade. Hoje, cada qual temmedo de si próprio; esquece o maior dos deveres: o dever que tem consigo mesmo.”

“Peque o corpo uma vez e estará livre do pecado, porque a ação tem um dom purificador. Nada restará então, salvo a lembrança de um prazer; ou a volúpia de um arrependimento. A única maneira de se livrar de uma tentação é ceder-lhe.”

“Atrás de toda coisa bela, há sempre um quê de trágico.”

“A vantagem das emoções é que elas nos desencaminham; a vantagem da ciência é não ser emotiva.”

“Para voltarmos à mocidade, basta repetirmos nossos erros.”

“As mulheres são um sexo decorativo. Nunca têm nada a dizer, mas falam que é um encanto. As mulheres representam o triunfo da matéria sobre o espírito; exatamente como os homens representam o triunfo do espírito sobre a moral.”

“A pesquisa do belo é o verdadeiro segredo da vida.”

“As criaturas vulgares não nos impressionam a imaginação. Ficam limitadas ao seu século. Nenhum encanto as pode trasnfigurar: conhecemo-lhes o espírito como os chapéus.”

“Os bons artistas existem simplesmente no que fazem; eis por que, em pessoa, são tão desinteressantes. Um grande poeta, o verdadeiro grande poeta, é o menos poético dos indivíduos. Mas o poetas medíocres são encantadores.”

“As mulheres nos tratam exatamente como os homens tratam os deuses: adorando-nos e aborrecendo-nos sempre para que façamos alguma coisa por elas.”

“As mulheres nos prezam pelos nossos defeitos. Quando estes são muitos, elas nos perdoam tudo, até a inteligência.”

“Definir é limitar.”

“O amor vive de repetição; e a repetição converte o apetite em arte. Ademais, toda vez que amamos, é o único amor de nossa vida. A diferença de objeto não altera a unidade da paixão. Intensifica-a, simplesmente. Cada um de nós tem, na existência, no mínimo uma grande aventura.”

“Civilizar-se não é fácil. Só se consegue por dois meios: cultivando-se, ou pervertendo-se.”

“Todo crime é vulgar, como toda vulgaridade é um crime. […] O crime é apanágio exclusivo das classes inferiores. […] O crime é para elas o que é para nós a arte: simplesmente um meio de provocar sensações raras.”

“Os livros que o mundo tacha de imorais são os que mostram ao mundo a sua imoralidade.”

2 respostas em “O Retrato da Vaidade Humana

  1. Dissecação irrepreensível de uma obra explendida. De fato, a mestria de Oscar Wilde na composição das personagens da obra em apreço (em especial, como bem ressaltou o autor da presente resenha, Lorde Henry, Dorian Gray e Basil Hallward) é digna de nota. Destaquem-se, nesse meu ínfimo comentário, a sagacidade cáustica e o humor avassalador que, com notável desenvoltura, soçobram os alicerces de uma cultura pretensamente intocável nos níveis moral e ético.

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