O Céu Embaixo da Terra

O artigo a seguir é mais um de autoria do Professor Marcelo Gleiser
(na foto abaixo) e fala sobre aquelas partículas invisíveis aos nossos olhos,
mas que vivem cruzando nossos corpos e todo o espaço continuamente,
entre elas a Matéria Escura, que ocupa mais de 80% da massa das Galaxias.
Para saber mais, leia também o artigo anterior: Contos da Infância Galáctica.

 

Quando se pensa em astronomia e astrônomos, a primeira imagem que temos é a de um sujeito sozinho no seu observatório no alto de uma montanha, com o olho fixo na lente de seu enorme telescópio. Existe algo de romântico nessa visão, o homem em busca de uma compreensão mais profunda do Universo, armado apenas de seu instrumento e de sua criatividade.

Não há dúvida de que essa imagem do astrônomo foi inspirada pela prática da astronomia que, tradicionalmente, era mesmo feita assim. Porém, com a automatização dos telescópios e a digitação de sua óptica, hoje controlada por CCDs acoplados a computadores ultra-rápidos, poucos astrônomos precisam ir até seus observatórios para colher dados para pesquisa.

Um exemplo extremo dessa automatização é o Telescópio Espacial Hubble, um dos instrumentos científicos mais bem-sucedidos da história, que é operado inteiramente da Terra por controle remoto. O Hubble não passa de um robô extremamente sofisticado, desenhado para colher imagens de alta precisão de objetos celestes próximos e muito distantes.

Assim como ele, existem muitos outros robôs observatórios colhendo dados em regiões do espectro eletromagnético além das que nos são visíveis. Um exemplo recente é o observatório espacial Glast, que estuda a radiação eletromagnética (RE) mais energética, os raios gama. De passagem, menciono que um dos operadores principais do Glast é o físico brasileiro Eduardo do Couto e Silva (tema da coluna de 15 de junho de 2008).

Mas existe outro tipo de astronomia que, paradoxalmente, para estudar o que existe nos céus, é realizada embaixo da Terra. Para entendermos como isso é possível, é bom lembrar que a luz, os raios X, os raios gama e as várias outras formas de RE são compostas de partículas chamadas fótons. Os telescópios que captam a luz, os raios gama ou outros tipos de RE são, na verdade, detectores de fótons, como se fossem redes de pesca desenhadas para apreender essas partículas.

Neutrinos se chocando contra a Terra

Só que os fótons não são as únicas partículas que existem nos céus. Pelo contrário, muitas outras “chovem” continuamente sobre nós. A maioria faz parte dos chamados raios cósmicos, compostos principalmente de prótons, elétrons e múons, que são elétrons mais pesados. Outras são os neutrinos, as “partículas-fantasma”, produzidas no coração do Sol. Neutrinos são capazes de atravessar a matéria normal como se fossem fantasmas.

Paredes ou mesmo a Terra inteira não são obstáculos para eles. Algumas partículas, como os elétrons e os múons, também penetram a matéria por boas distâncias. Portanto, para estudar os neutrinos sem a interferência de outras partículas, físicos usam cavidades subterrâneas, em geral minas abandonadas. Nelas, montam seus “telescópios”, detectores capazes de identificar as raras colisões de neutrinos com a matéria comum.

Representação gráfica da Mat. Escura

Existem outras partículas cruzando o espaço ainda mais misteriosas do que os neutrinos. Delas sabemos apenas que não são como a matéria comum. Elas não produzem RE, como fazem os elétrons. Portanto, não brilham, sendo conhecidas como “matéria escura”. Sabemos que existem apenas porque sua massa afeta o comportamento das galáxias pela gravidade. Cada galáxia tem uma espécie de véu de matéria escura, com uma massa que chega a ser dez vezes maior do que a massa de todas as suas estrelas.

A matéria escura também é caçada em observatórios subterrâneos. Até agora, nenhuma candidata foi detectada, o que causa uma certa ansiedade nos físicos. Mas também aumenta o seu fascínio. Vivemos numa realidade dominada pelo que nos é invisível.

Marcelo Gleiser é professor de Física Teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro “A Harmonia do Mundo”
Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo em março de 2008