Um gênio chamado Fiódor Dostoiésvki

Um pouco da vida e da obra do maior escritor russo de todos os tempos.

Presente no topo da maioria das listas de grandes escritores do mundo, Fiódor Dostoievski compôs sua literatura calcado na crença de que o indivíduo é composto de sofrimento, já que vive em um constante “conflito entre as idéias e o coração”: essa foi a definição que o próprio autor deu ao tema recorrente das suas principais obras. Uma crítica à ideologia socialista e ao niilismo que se alastravam pela Rússia da primeira metade do século XIX contrapostas aos valores e tradições ortodoxos que por muitos anos se assentavam entre o povo daquele país, principalmente entre as classes mais pobres. E era nessas classes, entre os mais desfavorecidos, que o autor buscava principal inspiração

A biografia de Dostoievski reflete esse pensamento e sua interpretação da sociedade o traduz em enredos nos quais esse conflito se mostra sempre aparente. Ao conhecer sua história de vida, é possível perceber muitas das influências que compuseram seus livros.

Nascido em 1821, o futuro escritor viria a perder a mãe aos 16 anos e o pai, médico e proprietário de terras, aos 18. Quando sua mãe faleceu, o jovem Fiódor foi enviado a São Petersburgo para estudar na Academia Militar de Engenharia e lá ainda estava quando recebeu a notícia da morte do pai. Responsável por si mesmo a partir de então, Dostoievski, que já havia estudado diversos autores europeus durante o curso de engenharia, viu-se obrigado a trabalhar em empregos que, apesar dos bons salários, pouco lhe apeteciam. Ingressou na carreira militar e conseguiu a patente de tenente no exército czarista. Entre um trabalho e outro no Ministério da Guerra em São Petersburgo, chegou a escrever duas peças de dramaturgia e a traduzir um livro de Balzac.

Aos 25 anos de idade, cansado do serviço público, desistiu de seu cargo e passou a se dedicar inteiramente à composição literária. Naquele mesmo ano, 1844, Fiódor Dostoievski publicou seu primeiro livro: Gente Pobre. Escrita em linguagem epistolar, a obra revelou-se um sucesso de crítica e, de forma arrebatadora, o autor deu o primeiro passo para alcançar seu futuro lugar no panteão dos escritores russos modernos. Tornara-se uma celebridade literária, mas tal passo grandioso mostrou-se logrado com a publicação de seus próximos três romances. Nenhum deles alcançou sucesso de crítica e de público e Dostoivski aparentava ter apenas sorte de principiante.

Sempre interessado nas classes baixas e frustrado com a carreira literária, o escritor passou a se envolver com socialistas utópicos e a participar de grupos que discutiam e pregavam a liberdade e a igualdade humanas. Diante do poder do czar e da tradicional sociedade dividida em castas da antiga Rússia, tal pensamento era considerado crime e combatido como tal. Ao ser denunciado, Dostoievski foi preso e enviado às prisões da Sibéria. Fora condenado a quatro anos de prisão e trabalhos forçados e mais um período indeterminado de serviço militar obrigatório.

Passou por duas prisões na Sibéria e mudou completamente seu pensamento sobre o povo ao perceber que, dentro das prisões, mesmo vivendo em um estado igualitário, as castas sociais continuavam divididas. Sonhou em liderar a classe servil, no entanto não foi aceito, sendo expulso da companhia dos servos. Passou a repudiá-los e nutriu por eles um rancor que o fazia desacreditar da sociedade. Porém, durante uma celebração religiosa de Páscoa, percebeu que aqueles homens, devastados pelo trabalho forçado e pela vida servil, também eram capazes de amar. O próprio Dostoievski definiu aquele momento como a sua conversão ideológica. Não se via mais como o líder do povo, tampouco os repudiava. Agora, via-os capazes de amar a agir por si próprios. Tinha esperanças novamente.

A reclusão durou quatro anos e por mais seis, ele se dedicou ao serviço militar, como cumprimento do restante de sua pena. Somente após dez anos de exílio, já com 38 anos de idade, Dostoievski voltou para casa.

São Petersburgo no final do século 19.

A experiência na Sibéria deu-lhe novo ânimo. A partir de seu retorno a São Petersburgo, em 1859, o escritor daria início à elaboração de seus grandes romances, as obras-primas de sua carreira – alguns de inspirações sociais, como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov; outros quase auto-biográficos, como O Jogador, Memórias do Subsolo e Recordações da Casa dos Mortos. Além destes, Dostoievski ainda viria a publicar outros cinco livros, totalizando dez romances no período posterior à reclusão.

A análise psicológica de seus personagens, cujas mazelas o autor explorava profundamente, descrevendo eventos e sensações para lhes compor a alma com detalhes, tornou-se sua marca registrada, a principal qualidade de suas histórias. É possível em cada um destes livros (e também nos primeiros) adentrar intensamente no mais íntimo pensamento e sentimento de cada um dos personagens.

Recordações da Casa dos Mortos, publicado em 1862, narra as histórias de prisioneiros na Sibéria, com toques de auto-biografia. No romance, Dostoievski se dedica mais ao tema que a uma linha narrativa precisa, já que o livro não conta apenas uma histórias, mas vários fatos ligados às vidas dos prisioneiros. Foi essa a obra que o trouxe de volta aos holofotes da literatura russa e aos elogios dos críticos. Além de lhe render um elogio do colega – e igualmente importante escritor da época – Leon Tolstoi, que disse que Recordações… era o melhor livro de toda a literatura moderna.

Dois anos depois, em 1864, viria o curto Memórias do Subsolo, um romance com pouco mais de cem páginas. Apesar da brevidade, o texto narra com mestria a mente de um funcionário público aposentado. Em forma de memórias, descritas em primeira pessoa, o livro discorre sobre os rancores e amarguras de um homem sem nome. Seu próprio protagonista discursa para o leitor, tentando convencê-lo de que é um merecedor de admiração, mas tudo o que sabe é expor seu rancor com os amigos e com a sociedade. Maltrata por prazer seu empregado, penetra na reunião de colegas que não o querem por perto, sente inveja da colocação social de cada um deles e se envergonha ainda mais com os atos que comete para impressioná-los. E ainda desconta tudo em uma pobre prostituta, com quem passa a noite – não em busca de prazer físico, mas a procura de alguém que lhe pareça inferior, cuja companhia lhe faça parecer mais culto e importante. Tudo isso, no entanto, é oculto aos personagens com quem o protagonista convive – seus desgostos, escondidos no subsolo de sua mente, são narrados apenas ao leitor. Do fundo de sua mente, o personagem conclui que não fazer nada era a melhor opção em sua situação – um reflexo do movimento niilista que ganhava força naquela época. O homem do subsolo viria a inspirar Tolstói a criar seu próprio personagem subterrâneo, em 1877, em seu livro Ana Karenina.

Logo em seguida, Dostoievski publicaria seu mais famoso romance: Crime e Castigo. Um livro que trata exatamente do que diz no título: um homem, Raskólnikov, que comete um crime de assassinato premeditado logo nas primeiras páginas, e passa o restante do volume sendo punido por isso. Mas sua punição não vem da justiça do Estado ou da vingança de interessados. O castigo ao qual o título se refere é o desespero de ser pego, de descobrirem seu crime. A paranoia toma conta do personagem e Raskólnikov passa enxergar perigo em todos os cantos. O romance, no entanto, vai muito além das agruras psicológicas do protagonista. Ele retrata uma sociedade dividida entre pobreza e riqueza e volta aos temas abordados em Memórias do Subsolo. Raskólnikov, em seus atos, mostrava-se também um niilista e, através do absurdo de sua vida, Dostoiévski mostra sua crítica ao movimento, tão contrário à visão moral e psicológica daquele momento.

Nesse período, o autor viaja pela Europa e conhece os jogos de azar dos cassinos. Vicia-se nas apostas da roleta e passa a apostar com frequência durante suas viagens. O fato o influencia a escrever O Jogador: do diário de um jovem. Um livro que se aprofunda na mente de Alexei Ivanovitch, um jovem que aprende a apostar e aos poucos vai se viciando. O texto acompanha o desenvolvimento das supostas estratégias do protagonista, para ganhar em um jogo cujos cálculos pouco ou nada valem.

Entre 1869 e 1875, Dostoiévski publicaria mais quatro livros. Mas foi apenas em 1881, já bem próximo da morte, que ele trouxe a público aquela que seria considerada sua magum opus: Os Irmãos Karamázov. O enredo acompanha uma conturbada família, em uma cidade interiorana da Rússia: o patriarca Fiódor Pavlovitch Karamázov e seus três filhos – rebentos de dois casamentos distintos. O título do livro, sobrenome da família ali apresentada, viria da junção de duas palavras russas: “castigo” e “desacerto”. Dessa maneira, ele mantém sua linha temática do homem que erra para construir sua própria punição. Entre intrigas familiares e discussões políticas e literárias, o texto apresenta a querela entre pai e filho, motivados por questões financeiras e pelo interesse de ambos por uma mesma mulher. A contenda chamou a atenção de Sigmund Freud, que viu no livro de Dostoiévski o retrato perfeito daquilo que o psicanalista viria a chamar de Complexo de Édipo: o embate entre pai e filho. Freud ainda consideraria Karamázov como a maior obra da História.

Ao todo, Fiódor Dostoiévski publicou 14 romances, 18 novelas e duas obras de não-ficção. Viveu por 59 anos e faleceu em fevereiro de 1881. Sua obra influenciou a filosofia de Nietzsche, a psicanálise de Freud e deu origem a muitos dos movimentos que se seguiram, como o surrealismo, o expressionismo e existencialismo – principalmente este último. Por muitos especialistas, Dostoiévski ganhou o título de um dos maiores pensadores da História da humanidade, o escritor que melhor soube traduzir a psique para as páginas de um livro e um dos maiores autores de todos os tempos.

Orgulho e Obsessão

Na capa do volume de “O Morro dos Ventos Uivantes” que li, existe, sobre um selo vermelho, os seguintes dizeres: “O livro favorito de Bella e Edward da série Crepúsculo”. Só isso bastaria para espantar qualquer leitor sensato. Bem recomendado, porém, tive o prazer de lê-lo e posso dizer: que susto tomarão as menininhas desavisadas se pensam que encontrarão nele mais uma perfeita historinha de amor.

O romance escrito pela poetisa inglesa Emily Brontë, ainda na primeira metade do século XIX, é a única publicação em prosa da autora, que viveu apenas 30 anos – entre 1818 e 1848. No período da publicação, O Morro recebeu várias críticas desfavoráveis, mas logo ascendeu aos clássicos da literatura inglesa, devido à riqueza de seus personagens e os significados escondidos por trás de cada um deles.

O livro narra não só as histórias de duas famílias de propriedades vizinhas, os Ernshaw e os Linton, como também a devastadora e obsessiva paixão entre Heathcliff e Catherine.

Heathcliff é um personagem sem passado. Trazido para a casa dos Ernshaw ainda na infância, ali conhece aquela que viria ser sua melhor amiga e, mais tarde, seu grande amor, a bela Catherine. Criados como irmãos e isolados do mundo na fazenda do Morro dos Ventos Uivantes, o casal de jovens se apaixona, mas são separados pela própria vida e pelos preceitos que os distinguem. Apesar dos fortes sentimentos em comum, Catherine era uma dama culta, de família tradicional e personalidade forte; já o rapaz não tinha ascendência, era visto como um bruto e tinha um orgulho e uma personalidade ainda maiores que os de sua amada. Dessa forma, o próprio modo de ser de ambos acabou por separá-los, porém não foi capaz de destruir o grande amor que os unia.

Ralph Fienes como Heathcliff

Privado de sua amada pelo simples orgulho de ambos, Heathcliff foge para ganhar a vida sozinho e, anos depois, volta rico, ostentando a aparência de um perfeito cavalheiro. Para sua decepção, no entanto, sua amada Cathy já havia se casado com o vizinho Edgar Linton. Restava a Heathcliff não só conformar-se ou mesmo reconquistá-la, como também cumprir seus planos de vingança contra aqueles que o acolheram e o humilharam para, por fim, consumar sua obsessão por Catherine.

Falando dessa forma, parece que o livro se remete a mais um tradicional triângulo amoroso. Não se enganem, pois daí em diante (ou mesmo já desde o início), a narrativa de Emily Brontë envereda pelo o que há de pior numa história de amor: obsessão, ganância, ciúmes, rancor, uma idolatria obsessiva e mortal e, por fim, a vingança fria e premeditada.

Na primeira parte do romance, Catherine parece ser o ponto central. Apesar de sua personalidade forte, se mostra incompleta ou, melhor dizendo, indecisa: presa entre os desejos e sonhos primitivos e aqueles realistas e racionais dos quais dependem seu futuro. É diante dessa bifurcação que Catherine rejeita Heathcliff, suprimindo suas mais bárbaras aspirações, e se volta para Edgar. É neste que, herdeiro de grandes propriedades e títulos de nobreza, ela avista seu futuro promissor; optando pela segurança em detrimento da aventura. No entanto é impossível para qualquer pessoa viver sem contrabalançar aquilo que os chineses chamam de Yin e Yang ou – afinal o assunto aqui é literatura inglesa – o que Stevenson chamou de Jekyll e Hyde: os lados racional e primitivo de cada um de nós.

Fiennes e Binoche como Heathcliff e Cathy

A vida de Catherine com Linton acaba por se tornar perfeita demais, enfadonha e entediante, cercada de empregados, livros e excesso de comodidade. Ela se torna uma rainha dentro do lar, se acomoda e até perde boa parte de sua petulância. Com o retorno de Heathcliff, tantos anos depois, Cathy, mais do que seu antigo amor, redescobre a vivacidade e as aventuras da infância e da juventude. Mais uma vez ela tenta equilibrar sua existência, fazendo, em vão, com que Edgar aceite Heathcliff em suas vidas. E mais uma vez ela tem sua personalidade bifurcada. Dessa nova dúvida, surge morte e renascimento: a renovação da vida no Morro dos Ventos Uivantes.

Se a interpretação acima dá a Catherine certa importância, engana-se quem pensa ser ela a mocinha a ser salva e amada. Não mesmo. Não existem heróis ou mocinhos na história. Os personagens que vivem no Morro dos Ventos Uivantes são apenas humanos. Todos crescem e evoluem no decorrer das páginas e não existe um sequer que o leitor não consiga odiar. Pois sim, todas aquelas personalidades – do mais baixo empregado ao mais rico patrão, passando até pelas crianças – são tão fortes e cheias de defeitos que não fogem ao ódio do leitor. Até mesmo os princípios religiosos, os mandamentos de Deus, aqui personificados e entoados às ladainhas pelo fanático Joseph, são apresentados com certa parcela de culpa sobre as mazelas dessa fatídica história. Passa-se por fim a adorar todos pelo simples fato de não se identificar com a podridão de nenhum deles. Nem mesmo a narradora (o livro é contado em primeira pessoa pela governanta Ellen Dean) consegue fugir aos defeitos humanos, com seus atos irresponsáveis, suas decisões tomadas por excesso de compaixão e, muitas vezes, por medo. Esta última, talvez, a grande culpada de toda a tragédia do livro.

Melhor nem estender muito sobre os personagens, pois cada um mereceria um artigo à parte, tal suas riquezas e unicidades.

Além das qualidades particulares desta obra de Brontë, que a torna singular e incomparável, existem ainda outros atributos que, apesar de comuns em muitos livros, a enriquecem ainda mais: o testemunho de uma época. Estão ali presentes não só as belas paisagens, frias e cinzentas do norte da Inglaterra, bem como também todos os costumes da sociedade rural inglesa do século XIX; como um título de nobreza pode separar com abismos duas classes igualmente ricas; a importância de um sangue tradicional; a grande fenda que separa os cultos dos iletrados, impedindo até mesmo uma simples amizade. E muitas outras peculiaridades da Era Pré-Vitoriana.

Capa do DVD da adaptação de 1992

Há ainda várias características comuns ao período gótico. A começar pelo próprio Heathcliff, com sua pele escura e seus traços de cigano e os mistérios não revelados de sua vida. E, como não poderia faltar, existem ainda fantasmas e vampiros, apresentados, porém, em sonhos e delírios durante as doenças febris e aflições dos protagonistas.

Não há como negar que Emily Brontë construiu em O Morro dos Ventos Uivantes uma belíssima obra de leves traços góticos que envolve mais terror e sofrimento, do que afeição e alegrias. Um caso de orgulho e obsessão que, confundido com amor, foi capaz de vencer as barreiras da morte. Tanto que, em 1957, o escritor francês Georges Bataille o classificou como “um dos mais belos livros da literatura de todos os tempos”. Enquanto o crítico americano Harold Bloom sentenciou, em 2002: “Uma obra de uma grandiosidade solitária”.

Com toda a certeza, um disparate este livro ser citado tão fora de contexto na obra de Stepheny Meyer. Mais um motivo – bem forte – para eu criticar Crepúsculo.

Curiosidade: o livro teve várias adaptações para o cinema. A mais recente delas é a do diretor Peter Kosminsky, de 1992, com Ralph Fiennes e Juliette Binoche.

Título: O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heigths) Autor: Emily Brontë País: Inglaterra Publicação Original: 1947 Publicação Lida: Editora Lua de Papel, 2009