Coração de poeta é sofrido, embriagado, vive sempre marcado, mas aguenta todos os baques da vida. O coração de Manoel de Barros trazia em si toda a sua nostalgia e suportou por quase um século a saudade dos tempos de infância. No entanto não aguentou a ruína da idade e deixou de bater na manhã do dia 13 de novembro de 2014, deixando órfãos as palavras e os versos do poeta mato-grossense.
Durante os 97 anos em que viveu, Manoel nunca envelheceu de verdade. Em sua obra, ele sempre exaltava a infância, as brincadeiras de moleque, a simplicidade da roça… Eram memórias de tempos idos misturadas às fantasias do presente, a invencionice de criança que nunca o abandonou. “Tudo o que não invento é falso”, dizia ele, quebrando o sentido das palavras e contorcendo as mentes daqueles que não viviam em seu mundo particular de poesia. Aliás, brincar com palavras era seu maior prazer: “percebi que servia era pra aquilo, ter orgasmos com as palavras”.
Manoel de Barros, como ele mesmo disse em suas “Memórias Inventadas”, era um escultor de palavras. Aquelas que caiam em suas mãos eram talhadas e lapidadas e ganhavam em seus versos um novo significado, às vezes até mesmo novas letras ou fonemas diferentes.
Usava as palavras para compor um pouco de tudo, sempre de maneira inusitada. Seus versos não falavam de grandes amores ou feitos heroicos. Falavam de latas velhas, carrinho de pau, sapo de brejo, garça, pedra e rio. Se citava os tempos de criança, era como se ainda os vivesse. Se versava sobre a maturidade, era como se nela nunca tivesse chegado. Se fazia rimas na velhice, tratava-a como uma terceira infância.
Apesar de aparentar inocência ao tratar o mundo sempre sob olhos de garoto, de inocente ele nada tinha. Não temia as palavras proibidas nas casas de família, e falava de punheta como quem falasse de esconde-esconde: apenas mais uma saudosa brincadeira de criança. Sem tabu que o segurasse, sem medo de preconceitos e apelidos. Manoel de Barros se orgulhava em ser o bocó que catava caracóis na beira do rio; prezava os insetos mais que os aviões, prezava mais as tartarugas que os mísseis; era “aparelhado para gostar de passarinhos”.
Sua poesia ganhou prêmios variados. Trezes deles entre os mais importantes do país, incluindo dois Jabutis, por “O Guardador de Águas” e “O Fazedor de Amanhecer”. Entre 1937 e 2013, Manoel publicou 34 livros no Brasil, além de publicações em Portugal, França e Espanha.
Antes de se enveredar pelas palavras, fez parte da Juventude Comunista, seguiu os passos de Luis Carlos Prestes e derramou lágrimas ao vê-lo se dobrar na direção de Vargas. Formou-se em Direito no Rio Janeiro; morou em pensionato; revoltou-se com a poesia e Padre Antônio Vieira; se inspirou com a obra de Arthur Rimbaud. Viveu na Bolívia, Peru e Nova York; fez curso de cinema e pintura; se descobriu poeta ainda na adolescência.
A verdade é que Manoel de Barros nasceu no mato e nunca saiu de lá. Veio ao mundo em dezembro de 1916 e, apesar do sucesso como poeta, nunca se permitiu estar à frente de holofotes, sempre fora recluso, tímido e recatado. Escrevia seus versos na fazenda que herdou dos pais, em Corumbá, onde morava desde 1960. Ganhou a vida criando gado e usou da poesia para se procurar, sem nunca ter se achado – o que, em suas palavras, lhe foi a salvação.
“No meu morrer tem uma dor de árvore.”