Gangnam Style, Latino e a Educação Brasileira

O mais novo hit da música mundial veio lá do outro lado do mundo, com língua quase impossível de se pronunciar e entender e é cantado por um rapper gordinho em um clipe aparentemente sem noção. Em contrapartida, aqui no Brasil, esta mesma canção foi copiada e deturpada pelo cantor pop/funkeiro Latino.

Na canção original, chamada Gangnam Style (estilo Gangnam), cantada pelo rapper Psy, busca-se “uma mulher elegante que saiba apreciar um convite para um café”, “uma mulher que é sexy, mesmo sem se mostrar muito” e que se interesse por “um cara que tem mais idéias do que músculos”.

A versão “latina”, porém, segue por outro viés. Aproveitando apenas do ritmo, o cantor brasileiro transformou Gangnam Style em Despedida de Solteiro. E os versos – com o perdão da palavra – na mais pura putaria. Deixa-se de lado a mulher ideal para poder aproveitar uma despedida de solteiro, “laçar, puxar, beijar”, ver “as minas todas nuas”, “de bumbum pra lua”.

Comparação das Letras (clique para ampliar)

Mas de onde mesmo é esse tal de Psy? Ah, é verdade, ele é da Coréia do Sul. É só um minúsculo país lá do outro lado do Pacífico, que tem uma irmã siamesa problemática. É só um país que já foi invadido pelos japoneses e ocupado por quatro anos. É só um país que foi espremido entre EUA e URSS, foi dividido em dois e reduzido a quase nada durante a Guerra da Coréia, na década de 1950. Mas é também o país que mais investiu em educação nos últimos 50 anos e que, devido a isso, deixou no passado toda a destruição que sofreu e é hoje uma potência tecnológica, com um dos mais altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Em 2006, no ranking do Programa Internacional de Avaliação dos Alunos, os sul-coreanos ficaram em primeiro lugar na resolução de problemas, terceiro lugar em matemática e décimo primeiro em ciência. O sistema educativo está tecnologicamente avançado e foi o primeiro país do mundo a equipar todas as suas escolas primárias e secundárias com Internet de banda larga. Com esta infraestrutura, a Coréia do Sul tem desenvolvido os primeiros livros didáticos digitais no mundo, que serão distribuídas de forma gratuita aos estudantes do ensino primário e secundário até 2013.

Opa, mas calma lá. Toda essa tempestade por causa de uma música? Não seria demasiado exagero? Não, não seria.

Psy e Latino têm um mesmo nicho de público – os jovens e os adolescentes. Ambos fazem músicas divertidas e agitadas, com coreografias animadas, que servem para embalar qualquer festa. Entretanto, enquanto o sul-coreano conversa com um público consciente e – porque não? – honrado, Latino precisa falar sobre a “realidade” brasileira, ou seja, “vou ser um vagabundo que anda pelas ruas em busca de sexo fácil e faço das mulheres o que eu bem entendo”… mais ou menos por aí

E tudo isso é reflexo da educação e do desenvolvimento cultural e social do público. Enquanto os coreanos aceitam com facilidade um rapper com responsabilidade social, os brasileiros insistem no funk da sacanagem. Uma sociedade bem educada presa por valores que vão além do “puxar, beijar, vou te pegar… eu quero sexo pra galopar”. Um jovem bem educado valoriza a si mesmo e sabe valorizar os demais à sua volta, sem tratar como objeto aqueles que o rodeiam, sem se prestar à orgia como um modo natural de diversão.

Outro fator importante é o comércio cultural. Com cultura desenvolvida e povo educado, não é necessário roubar um ritmo estrangeiro para se fazer sucesso. Quem sabe cria, não copia! Não pega carona no sucesso de outros para fazer sucesso também. Não plagia! E nesse comércio, o balanço brasileiro é sempre negativo, pois foram raros os momentos da História em que exportamos nossa cultura e nossa criatividade, enquanto a importação da cultura estrangeira nunca cessou em nosso país. Quantas paupérrimas  versões de músicas estrangeiras a Jovem Guarda não fez? E o sertanejo romântico, o pop, ou mesmo o rock? Até a MPB tem canções importadas. E o que da nossa cultura é empurrado para o mundo? A Bossa Nova, que nem sequer existe mais? Não, exportamos o “ai, se eu te pego”.

Recentemente, Cristovam Buarque, o político que mais luta pela educação deste país, disse que “o Brasil vive um apagão intelectual”, referindo-se ao resultado do Ideb deste ano, que não chegou aos 4 pontos entre as escolas públicas e não passou dos 6 entre as particulares. Ainda nas palavras dele, nós “avançamos ficando para trás. Coreia do Sul, Índia, China e Irlanda, que há trinta anos atrás estavam em situação pior que o Brasil, hoje estão melhor, pois fizeram o dever de casa.”

Se nossos músicos precisam importar canções estrangeiras para fazer sucesso por aqui, isso nada mais é que um reflexo do restante do país, cuja economia é baseada na reprodução de produtos criados lá fora, desenvolvidos por marcas estrangeiras.

E o nosso dever de casa, quando é que será feito?

O Contexto Social de Gangnam Style

O contexto de Gangnam Style, a história por detrás do clipe e o que diz os versos originais vão muito além de um ritmo divertido e uma sequência de imagens aparentemente aleatórias e coloridas. Gangnam  é um dos bairros mais ricos de Seul, a capital da Coréia do Sul. Porém, para um país baseado em valores de trabalho duro e honra, o bairro, devido à sua história rápida de formação e desenvolvido (pouco mais de 20 anos), é marginalizado pelo restante da cidade. Ali seus moradores enriqueceram da noite para o dia, mas não por seguir os valores tradicionais sul-coreanos de trabalho e sacrifício, mas sim devido à especulação imobiliária, que tornou a região extremamente valorizada, cuja média de preço de um apartamento é de US$ 716 mil e com escolas cerca de quatro vezes mais caras que no restante do país. Parece estranho para nós brasileiros, mas sim, são ricos excluídos do restante da sociedade.

De uma maneira divertida, Psy trabalha com essas questões culturais em seu clipe, que para nós passam totalmente despercebidas e parece que tudo é uma sequência de imagens sem nexo. O rapper, que vem de uma família rica da região de Gangnam, foge do pré-conceito existente sobre os moradores deste distrito. O personagem do videoclipe não frequenta as caras boates locais, nem as academias abarrotas de coreanas esculturais. Tampouco tem o corpo modelado por cirurgiões plásticos. Pelo contrário, ele dança em um ônibus lotado, cheio de velhinhos aposentados; faz seu discurso sentado em um vaso sanitário; é gordinho e nada bonito; frequenta saunas com gangsteres e lugares cheios de lixo. É um riquinho hipócrita querendo parecer pobre? Talvez. Mas mais que isso, é uma paródia – extremamente divertida – de si mesmo. Talvez nada muito digno de admiração, no entanto há ainda a letra da música a ser considerada. Na canção, busca-se a mulher ideal, que queira viver ao lado de “um cara que tem mais ideias do que músculos”. E só por isso já merecia um bocado de respeito.

Atualização de Última Hora

Qual não foi minha surpresa, enquanto pesquisava para escrever este post, descobrir que a canção Despedida de Solteiro de Latino, está sendo boicotada pelo público!

Uma campanha pela internet convoca os internautas a dar o maior número de deslikes (negativações) na música postada no canal oficial do cantor no YouTube. Até o momento já foram mais de 120 mil deslikes. Estou dando risada! Hahaha

Quem quiser aderir à campanha, basta clicar aqui e dar um voto negativo ao vídeo.

Com informações do G1, Terra, O Globo e Wikipédia.

Atualização 2

Acho que isso encerra o assunto! hahaha

A Geração Coca-cola Morreu

“Geração Coca-cola” deveria ser proibida e jamais tocada novamente por qualquer banda! Uma das mais desafiadoras canções de Renato Russo marcou uma geração, mas perdeu seu contexto, ficou desatualizada, deixou de fazer sentido. Ouvi-la e cantá-la hoje em dia é pura hipocrisia!

Composta por volta de 1978-9, “Geração Coca-cola” é destinada a um público em específico: jovens que nasceram na ditadura militar, viram a repressão, sentiram a estagnação e lutaram – em segredo ou não – para pôr fim ao governo tirânico dos generais. Era uma época completamente diferente da atual. O restante do mundo se dividia em dois, em uma guerra não declarada, às portas de uma possível aniquilação da vida sob o inverno nuclear. As pessoas tinham motivos para lutar e transgredir. Havia um “inimigo” em comum a ser combatido, a rebeldia adolescente não era sem causa e o povo não apenas clamava por mudanças… eles agiam!

“Quando nascemos fomos programados a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos U.S.A, de nove as seis.”

Após a Segunda Guerra Mundial, a influência norte-americana sobre os países capitalistas crescia cada vez mais. A cultura pop estadunidense e sua indústria eram literalmente impostas aos países amigos. A marca Coca-cola, que intitula a canção, já estava presente no Brasil desde 1942, mas só ganhou força nacional no início da década de 1970, tornando-se o ícone máximo do imperialismo norte-americano.

Legra original de Geração Coca-cola

No Brasil, a programação televisiva era dominada pelos seriados americanos. Mesmo o horário citado na letra da canção não foi escolhido aleatoriamente. Os períodos da manhã e da tarde tinham baixa audiência (como têm ainda hoje) e, portanto, era bem mais barato para as emissoras de TV brasileiras retransmitirem programação estrangeira que produzir algo original. O “horário nobre” começava (e ainda começa) às 6h da tarde, quando finalmente uma programação nacional entrava no ar, com telejornais, novelas, musicais e programas de variedades. Das 9h às 18h, no entanto, o que mais se via eram os chamados “enlatados americanos”, em referência aos produtos industrializados importados.

“Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial, mas agora chegou nossa vez, vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”.

A economia ia bem, porém quase nada era originalmente brasileiro. Indústria e comércio automotivos e alimentícios eram filiais de empresas estrangeiras, que chegavam ao país apenas com a promessa de empregos, pois levavam para fora todo o lucro e seus royaltys. Impulsionados pela publicidade da TV, os jovens consumiam tudo o que era produzido ou importado e assim, levando adiante a máxima latina panem et circensis, o governo tentava acalmar e manejar as massas.

Show do Aborto Elétrico na UnB (1978)

Entretanto era chegada a hora de revidar e aqui começa a coragem de Renato Russo e companhia ao propor, lá em Brasília, debaixo dos bigodes dos generais, “cuspir de volta o lixo em cima” dos repressores. E, dessa maneira, ele intitula sua própria geração como “filhos da revolução”, “burgueses sem religião”, “futuro da nação”… e o título que marcaria para sempre os jovens setentistas e oitentistas: “Geração Coca-cola”.

“Depois de 20 anos na escola não é difícil aprender todas as manhas do seu jogo sujo. Não é assim que tem que ser?”

Era o momento de mudar, de deixar de ser o “país do futuro” para assumir sua posição no presente. Os jovens começavam a se manifestar abertamente. O próprio movimento das Diretas Já aconteceria dali a 3 anos apenas. Os 20 anos de escola, citados na música, podem fazer referência tanto aos estudos em si, quanto ao tempo de ditadura, que já governava por quase duas décadas. E engana-se quem pensa que o verso final desta estrofe é uma negativa: é uma ofensiva indagação.

O “dever de casa” citado logo a frente faz exata referência a essas mudanças, a esse novo modo de pensar, à experiência adquirida com o tempo.

“Vamos fazer nosso dever de casa e aí então vocês vão ver suas crianças derrubando reis, fazer comédia no cinema com as suas leis.”

As crianças criadas pela ditadura militar haviam crescido, iriam se voltar contra seus criadores e debochar das leis que eles criaram. Iriam fazer comédia no cinema com tudo aquilo que estava prestes a acabar.

Primeiro álbum da Legião (1985)

Eles – toda a juventude da época – eram os filhos da revolução. Eram a Geração Coca-cola. Mudaram o país, venceram seu inimigo, derrubaram o mal que os dominava. E prometeram um país melhor daí por diante.

Mas a Geração Coca-cola morreu.

Se renderam ao tempo, ao sistema, ao modo de vida que antes abominavam.

As pessoas que na época ouviam Aborto Elétrico estão hoje com seus 45 ou 50 anos, muito bem vivos, casados, pais de família, ativos no mercado de trabalho. No entanto diferentes, talvez céticos e endurecidos demais para terminar o que começaram há 30 anos atrás.

Os velhos “inimigos” tornaram-se sombras de um passado remoto e os novos parecem se misturar à multidão de tal maneira, que passam totalmente despercebidos. Tão, mas tão despercebidos que, muito provavelmente, você mesmo que agora lê este texto, pode ser um destes novos repressores… só não percebeu isto ainda.

E diante de tanta estagnação, a geração do século XXI parece ter se acomodado. Diz, mas não faz; reclama, mas não luta; clama, mas não busca. Deixe como estar, que talvez um dia alguém conserte! É assim que todos parecem pensar.

E tudo isto justifica a proposta de se proibir a execução da velha música de Renato Russo. Apesar de parecer atual, ela é apenas uma lembrança. Lembrança de tempos duros e tiranos. Mas apenas uma lembrança. E hipócritas são todos aqueles que hoje a ouvem, vibram e se emocionam.

Curiosidade: Geração Coca-cola foi a canção que abriu as portas das gravadoras para a Legião Urbana, quase 3 anos após o fim do Aborto Elétrico. A música foi apresentada à EMI em uma fita demo, pelos integrantes dos Paralamas do Sucesso e, originalmente, possuía um ritmo bem mais suave. Foi somente a pedido da gravadora que Geração Coca-cola ganhou seu arranjo mais pesado. Relembrando este passado, a Legião tocou a versão original da canção no lendário show do Metropolitan, no Rio de Janeiro, em 1994, que deu origem ao álbum “Como é que se diz eu te amo”.

Apesar de composta para o Aborto Elétrico, Geração Coca-cola só veio a ser gravada oficialmente 1985, no primeiro álbum da Legião Urbana.

Leia também as análises de:

“Índios”

Daniel na Cova dos Leões

*ABAIXO SE ENCONTRAM, PARA MAIOR ENTENDIMENTO DO LEITOR, UM CLIP DA MÚSICA E SUA LETRA:

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove as seis.

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de 20 anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola

Depois de 20 anos na escola
Não é dificil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola

O Primeiro Ato – Análise de Daniel na Cova dos Leões

Citações de histórias bíblicas são usadas constantemente para ilustrar diversas filosofias ou diversos fatos do quotidiano. Mas seria possível intitular um ato homossexual citando uma passagem da Bíblia como referência, sem que isso se torne apelativo ou monstruoso para os crentes cristãos? “Essa [música] agora, é sobre uma coisa que é muito boa, mas que no momento está sendo meio difícil. É sobre sexo“, disse Renato Russo em 1988, no Maracanãzinho, se referindo à música que cantaria à seguir: “Daniel na Cova dos Leões”.

Com esta música, lançada no álbum “Dois” da Legião Urbana, Renato começava a expor em sua arte a sua própria homossexualidade, mesmo que de forma muito discreta. Tema que, mais tarde, ele abordaria novamente em várias outras canções, de maneira mais aberta, como em “Meninos e Meninas” (“[…]E eu gosto de meninos e meninas/Vai ver que assim mesmo e vai ser assim pra sempre”). Assim, aos poucos, mesmo que a letra não se referisse a si mesmo, Renato ia expondo ao mundo sua preferência sexual, seus tormentos perante o preconceito da sociedade, suas dificuldades e seus aprendizados nesta área que, para ele, era tão complicada.

Para ouvidos desatentos, a letra de “Daniel na Cova dos Leões” narra uma história de amor comum, um casal apaixonado. No entanto, se interpretada com um pouco mais de atenção e contexto, percebe-se que a letra descreve – prudentemente – um ato sexual entre dois homens – muito provavelmente o primeiro, quando ambos ainda estão na fase de descobertas, num processo de aceitação. Mas não só. A canção, de 3 estrofes apenas, pode ser tematicamente dividida no mesmo número. Primeiro o ato em si, depois o carinho e a cumplicidade e, por fim, o medo e as incertezas diante do novo e do desconhecido.

A única menção direta ao homossexualismo é feita no penúltimo verso da segunda estrofe: “Teu corpo é meu espelho e em ti navego”, deixando claro que o casal que protagoniza a canção pertence a um mesmo gênero, com corpos iguais, reflexos um do outro. E como saber se são dois homens ou duas mulheres? A resposta pode ser encontrada logo nos primeiros versos da música: “Aquele gosto amargo do teu corpo/Ficou na minha boca por mais tempo.” Uma alusão a conclusão do sexo oral entre dois homens.

Sim, a música se inicia com um orgasmo e tudo o que se segue após estes dois vesos são prazeres, dúvidas e aceitações.

“Aquele gosto amargo do teu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo.
De amargo, então salgado ficou doce,
Assim que o teu cheiro forte e lento
Fez casa nos meus braços e ainda leve,
Forte, cego e tenso, fez saber
Que ainda era muito e muito pouco.”

A partir do terceiro verso, inicía-se uma pequena metáfora, entre o prazer e o desconforto – ou mesmo o nojo –  causado pelo orgasmo oral, que vai ganhando um sabor diferente, um deleite desconhecido, um amargo que vai aos poucos se adocicando. Se reorganizarmos a frase livremente, ela ficaria mais ou menos assim: “Assim que o teu cheiro fez casa nos meus braços, percebi que isto ainda era muito pouco. E o sabor, que era salgado, então ficou doce.” Perde-se toda a beleza, mas ganha-se mais clareza.

A patir da segunda estrofe, dá-se início ao tema seguinte, a cumplicidade pelos sentimentos mútuos: “Faço nosso o meu segredo mais sincero/E desafio o instinto dissonante.” A homossexualidade, que antes era o segredo maior de cada um em separado, passa a ser de ambos e, juntos, eles desafiam o instinto dissonante, o instinto que destoa, que foge do normal: a atração entre dois homens.

Segue-se então para os terceiro e quarto versos desta estrofe: “A insegurança não me ataca quando erro/E o teu momento passa a ser o meu instante”, quando passam à aceitação, e a insgurança não mais existe. O quarto verso, por sua vez, faz menção direta ao orgasmo. O “momento” e o “instante” são o ápce do prazer. E o gozo de um passa a ser o deleite do outro e vice-versa. Afinal todo o casal que se gosta de verdade, se importa um com o outro, seja em que momento for.

Já a última estrofe é uma das mais belas e mais complexas metáforas da música brasileira:

“Mas, tão certo quanto o erro de ser barco
A motor e insistir em usar os remos,
É o mal que a água faz quando se afoga
E o salva-vidas não está lá porque não vemos.”

A maneira mais correta para interpretá-la é inverter os dois primeiros com os dois últimos versos e entender que a sensação de afogamento é tão frustrante quanto à teimosia de usar remos quando se tem um motor à disposição: pode-se ir longe, mas o medo mantém a vida arcaica.

Apesar da insegurança transmitida pela música, Renato foi seguro o bastante ao entitulá-la, dando-lhe o nome de uma das mais famosas passagens do Antigo Testamento Bíblico: “Daniel na Cova dos Leões”, na qual o personagem-título, um temente a Deus e súdito fiel do rei Dário, é vítima de invejosos, enganado, condenado por traição ao rei e jogado na cova dos leões, onde as feras deveriam decidir seu destino – ou seja, comê-lo vivo. No entanto Deus enviou seus anjos para fecharem as bocas dos felinos esfomeados e o inocente Daniel passou a noite em paz, sem temer as garras ou as presas que o circundavam, até ser retirado dali no dia seguinte pelo próprio rei Dário.

Na palavras do próprio Renato, o título da música se refere à “situação da pessoa que está encurralada e tem que provar alguma coisa. É sobre ter que lidar com uma sexualidade que não é aceita. Tem aquelas imagens de ser barco a motor e usar remo […] A imagem é essa: Daniel é inocente e é colocado no meio dos leões, só que os leões não o comem. Ele acalma os leões¹.

Como disse Oscar Wilde em seu prefácio à Dorian Gray, “A Arte reflete o espectador e não a vida”. E não há como negar que a interpretação de qualquer obra de arte – seja ela um quadro, um filme, um livro, uma música etc. – é algo extremamente pessoal e única, ou seja, cada qual tem sua própria visão sobre uma obra artística, baseando-se na sua bagagem cultural, histórica e sentimental. Mesmo assim, o contexto do artista deve-se sempre ser levado em consideração: sua época e sua história. Que muitos interpretem algo à sua maneira, isso é comum e até mesmo correto, mas que as palavras do autor sejam sempre ouvidas: “isso não surgiu com Meninos e meninas. Daniel na Cova dos Leões, do segundo disco, já falava sobre sexo oral”, disse Renato, quando questionado sobre a relação de sua homossexualidade com as músicas da Legião².

Atualização: Em sua auto-biografia, Dado Villa-Lobos, eu falar desta canção, diz que Daniel na Cova dos Leões “é a música mais gay que ele conhece.”³, o que reforça tudo o que foi dito acima.

Leia também as análises de:

“Índios”

Geração Coca-cola

1 – Letra, Música e Outras Conversas, de Evandro Geraldo Leoni, 1995.

2 – Renato Russo de A a Z, 2000.

3 – Dado Villa-Lobos: Memórias de um Legionário, 2015

*Abaixo se encontram, para maior entendimento do leitor, um clip da música e sua letra:

Daniel na Cova dos Leões

Aquele gosto amargo do teu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo.
De amargo, então salgado ficou doce,
Assim que o teu cheiro forte e lento
Fez casa nos meus braços e ainda leve,
Forte, cego e tenso, fez saber
Que ainda era muito e muito pouco.

Faço nosso o meu segredo mais sincero
E desafio o instinto dissonante.
A insegurança não me ataca quando erro
E o teu momento passa a ser o meu instante.
E o teu medo de ter medo de ter medo
Não faz da minha força confusão.
Teu corpo é meu espelho e em ti navego
E eu sei que a tua correnteza não tem direção.

Mas, tão certo quanto o erro de ser barco
A motor e insistir em usar os remos,
É o mal que a água faz quando se afoga
E o salva-vidas não está lá porque não vemos

Índios Frustrados*

renato-russoAs letras de Renato Russo dariam, se é que já não deram, maravilhosos tópicos para mestrados e doutorados, dos mais diversos temas, da psicologia à literatura. São infinitos os assuntos abordados em suas músicas e infinitos também as suas interpretações. É impressionante ver as pessoas buscarem os mais variados significados, mesmo que errôneos, em músicas como Meninos e Meninas, Pais e Filhos, Giz e até mesmo na saga de João de Santo Cristo, em Faroeste Caboclo. Na primeira ele assume sua homossexualidade, a segunda fala dos erros cotidianos que tanto distanciam as pessoas. Na terceira, Renato lembra sua infância, enquanto na última, brinca com a carência de heróis nacionais e a migração desordenada do povo, em busca de uma vida melhor na Capital Federal. Basta digitar algo relacionado no Google para encontrar diversas discussões em fóruns e blogs pela internet.

Entre todas essas letras, verdadeiros poemas, talvez a mais intrigante e passível de interpretações seja a música “Índios” (assim mesmo, com aspas), divulgada ao público no álbum “Dois” da Legião Urbana. Nela existem, a cada estrofe, frustrados apelos por impossibilidades que tanto afligem a alma: “Quem me dera/Ao menos uma vez…”

Para entender a música completamente, é preciso primeiro conhecer o contexto no qual ela foi composta, em 1984: Renato Russo acabava de se recuperar de uma tentativa de suicídio na qual havia cortado os pulsos. O motivo ninguém sabe ao certo. O próprio cantor disse ter sido por acidente, não para se “matar nem nada. Foi frescura, estava bêbado”, foi sua explicação. Por acidente ou não, Renato estava depressivo e parecia estar fazendo um balanço de toda a vida, que lhe passava diante dos olhos, e “Índios” parece ter sido a válvula de escape da época: preto no branco tudo o que ele sentia em relação à vida e ao mundo naquele momento. Foi assim que, a cada estrofe, o cantor citou vários e complexos problemas, não só dele, mas de toda a humanidade.legiao-dois

A primeira estrofe da música faz alusão aos próprios índios colonizados: Quantas pessoas nos roubam nossa essência e dizem que, ao nos doarmos, estamos dando uma prova de amizade: o ouro dos antigos índios?

Os índios só são citados novamente na 12ª estrofe, já próximo da conclusão, dessa vez fazendo alusão ao fato da “inocência”, em seu sentido mais amplo, nos tornar alvos de pessoas corruptíveis, o que nos faz facilmente domesticáveis. Mas a inocência não era pra ser algo bom?

O que estas estrofes querem dizer é que somos todos índios nas mãos dos colonizadores: constantemente enganados, comprados e escravizados, tudo em nome do nosso próprio bem.

Mas não é dos índios que quero falar aqui. Então passemos adiante.

A terceira estrofe é uma das mais interessantes: quem de nós consegue explicar o que ninguém consegue entender? E já pararam pra pensar que os fatos do passado teimam em se repetir no futuro? E os versos mais interessantes: “o futuro não é mais/como era antigamente.” Nestes últimos versos, Renato fala de sonhos e planos que, por mais que os realizemos, nunca são como realmente queríamos. Nosso futuro nunca será exatamente da forma como sonhamos ser.

Os sonhos são citados novamente na décima estrofe. Dessa vez um sonho coletivo: a felicidade plena de todo o mundo. Como realmente seria bom para nós, mesmo que não fosse verdade, “acreditar/ que o mundo é perfeito/ e que todas as pessoas/ são felizes.” Seria um alívio para os mais sensíveis corações humanos, pelo menos “por um instante”.

E o culpado de tudo isso, Renato só apresenta nos dois últimos versos da quinta estrofe: “nos deram espelhos/ e vimos o mundo doente.” Eis que o tumor do mundo está em nós mesmos. Basta olharmos para nossa própria face e veremos que não é a ação de terceiros sobre nós, mas também a ação de nós sobre os outros. Não é só o mal que nos causam, mas o mal que causamos!

E isso nos leva ao assunto principal a ser abordado aqui: o porquê da corrupção da inocência, da frustração diante dos sonhos realizados e da ganância e materialismo citados em outras estrofes da música. A culpa que deriva de nós e nos é apresentada no refrão. Afinal, quem é o “você” pelo qual o cantor suplica no refrão de “Índios“?

renato-russo-2“Eu quis o perigo/ e até sangrei sozinho./ Entenda!/ Assim pude trazer/ você de volta pra mim.” É este “você” o único capaz de entendê-lo, “do início ao fim”. Outra parte interessante do refrão é quando Renato diz sentir saudades de tudo o que ainda não viu. Ou seja, de um futuro que nunca existiu, a não ser nos sonhos. E o único capaz de curar essa saudade, seria o mesmo “você” citado acima.

Os dois primeiros versos do refrão são fáceis de entender. Renato havia cortado os pulsos e sangrara sozinho em busca de alguém. Alguém que conseguisse curar suas frustrações. Mas quem? A resposta está nas 6ª e 11ª estrofes, respectivamente:

“Quem me dera
Ao menos uma vez
Entender como um só Deus
Ao mesmo tempo é três
Esse mesmo Deus
Foi morto por vocês
Sua maldade, então
Deixaram Deus tão triste.”

“Quem me dera
Ao menos uma vez
Fazer com que o mundo
Saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz
Ao menos, obrigado.”

Sim, a conclusão é exatamente essa: homossexual, alcólatra e viciado em drogas, depressivo e solitário, mesmo rodeado de sua legião de fãs, Renato Russo, naquele momento quase derradeiro, se apegou a Deus. O Deus Único, Católico ou Protestante, não importa.

Renato pode não ter confessado em entrevistas, mas confessou em sua música o motivo daquela tentativa de se matar. Ele estava só. Aquela solidão que nenhum ser humano é capaz de preencher. Renato Russo se sentia afastado de algo superior que antes dava um sentido maior à sua vida. Talvez essa conclusão seja um bocado pretenciosa, mas é apenas a interpretação deste simples orc perante a mente genial de um Monstro da música. No início, a própria conclusão da música parece ser irônica, mas ao fim ela se mostra bem sólida em seu caminho.

Além de um desabafo, “Índios” é um espelho. Ouvir a música nos faz pensar em nós mesmos. Afinal, os males do mundo estão em nós. Todos temos as mesmas frutrações. Nos doamos e nada ganhamos. E quantas vezes nos doam sem nada darmos em troca. Sonhamos e nunca realizamos, pelo menos não como deveria ser. Nos frustramos, nos frustramos e nos frustramos. Em maior ou menor grau, eis o eptáfio de todo ser humano.

Quanto ao motivo pelo qual a música se chama “Índios”, talvez eu não saiba responder, mas Renato, uma vez indagado sobre isso, respondeu: “Essa música não fala sobre índios. Fala sobre ‘Índios'”. E quem são os índios? E quem somos nós?

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Geração Coca-cola

Daniel na Cova dos Leões

*ABAIXO SE ENCONTRAM, PARA MELHOR ENTENDIMENTO DO LEITOR, UM CLIP DA MÚSICA E SUA LETRA:

 

“Índios”

Quem me dera
Ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro
Que entreguei a quem
Conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora
Até o que eu não tinha

Quem me dera
Ao menos uma vez
Esquecer que acreditei
Que era por brincadeira
Que se cortava sempre
Um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda

Quem me dera
Ao menos uma vez
Explicar o que ninguém
Consegue entender
Que o que aconteceu
Ainda está por vir
E o futuro não é mais
Como era antigamente.

Quem me dera
Ao menos uma vez
Provar que quem tem mais
Do que precisa ter
Quase sempre se convence
Que não tem o bastante
Fala demais
Por não ter nada a dizer.

Quem me dera
Ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.

Quem me dera
Ao menos uma vez
Entender como um só Deus
Ao mesmo tempo é três
Esse mesmo Deus
Foi morto por vocês
Sua maldade, então
Deixaram Deus tão triste.

Eu quis o perigo
E até sangrei sozinho
Entenda!

Assim pude trazer
Você de volta pra mim
Quando descobri
Que é sempre só você
Que me entende
Do início ao fim.

E é só você que tem
A cura do meu vício
De insistir nessa saudade
Que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Quem me dera
Ao menos uma vez
Acreditar por um instante
Em tudo que existe
E acreditar
Que o mundo é perfeito
Que todas as pessoas
São felizes…

Quem me dera
Ao menos uma vez
Fazer com que o mundo
Saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz
Ao menos, obrigado.

Quem me dera
Ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado
Por ser inocente.

Eu quis o perigo
E até sangrei sozinho
Entenda!

Assim pude trazer
Você de volta pra mim
Quando descobri
Que é sempre só você
Que me entende
Do início ao fim.

E é só você que tem
A cura pro meu vício
De insistir nessa saudade
Que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Nos deram espelhos
E vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.

Novos Heróis

jmgHá algumas semanas, por mero acaso, meu irmão recebeu por MSN uma música de uma dupla da qual nunca ouvi falar. Pelo nome, pensei a princípio que fosse mais um desses pseudo-sertanejos, chamados de universitários. Mal sabia que estava prestes a me tornar um fã.

Logo que ouvi a música fiquei maravilhado. Não é todo dia que se vê músicos com coragem e audácia para gravar canções desse tipo, indo na contra-mão das atuais modinhas e ainda criticando-as, ou mesmo exaltando seu bom gosto, sem vergonha de mostrar que ainda é possível compôr com qualidade sem espantar o público.

Enfim, a dupla a qual me refiro é formada por Julinho Marassi e Gutemberg, dois músicos do Rio de Janeiro, considerados a dupla nº 1 do Sul Fluminense, ou simplesmente “A Dupla”. E a música é a chamada “Aos Meus Heróis”, composta, de acordo com Julinho, “por saudade da MPB e de escutar todos esses artistas maravilhosos” que fizeram parte de sua juventude.

Abaixo estão um vídeo do YouTube com a música referida (não reparem nas imagens, elas distorcem um bocado a música) e também a letra completa. Porém é possível, no site da dupla, ouvir todas as músicas de seus 2 CDs e ainda baixá-las gratuitamente.

“Ao Meus Heróis”
Composição: Júlio César Marassi

Faz muito tempo que eu não escrevo nada,
Acho que foi porque a TV ficou ligada
Me esqueci que devo achar uma saída
E usar palavras pra mudar a sua vida.

Quero fazer uma canção mais delicada,
Sem criticar, sem agredir, sem dar pancada,
Mas não consigo concordar com esse sistema
E quero abrir sua cabeça pro meu tema

Que fique claro, a juventude não tem culpa.
É o eletronic fundindo a sua cuca.
Eu também gosto de dançar o pancadão,
Mas é saudável te dar outra opção.

Os meus heróis estão calados nessa hora,
Pois já fizeram e escreveram a sua história.
Devagarinho vou achando meu espaço
E não me esqueço das riquezas do passado.

Eu quero “a benção” de Vinícius de Morais,
O Belchior cantando “como nossos pais”,
E “se eu quiser falar com…” Gil sobre o Flamengo,
“O que será” que o nosso Chico tá escrevendo.

Aquelas “rosas” já “não falam” de Cartola
E do Cazuza “te pegando na escola”.
To com saudades de Jobim com seu piano,
Do Fábio Jr. Com seus “20 e poucos anos”.

Se o Renato teve seu “tempo perdido”,
O Rei Roberto “outra vez” o mais querido.
A “agonia” do Oswaldo Montenegro
Ao ver que a porta já não tem mais nem segredos.

Ter tido a “sorte” de escutar o Taiguara
E “Madalena” de Ivan Lins, beleza rara.
Ver a “morena tropicana” do Alceu,
Marisa Monte me dizendo “beija eu”
Beija eu, Beija eu Deixa que eu seja eu
Beija eu, beija eu deixa qe eu seja eu

O Zé Rodrix em sua “casa no campo”
Levou Geraldo pra cantar no “dia branco”.
No “chão de giz” do Zé Ramalho eu escrevi
Eu vi Lulu, Benjor, Tim Maia e Rita Lee.

Pedir ao Beto um novo “sol de primavera”,
Ver o Toquinho retocando a “aquarela”,
Ouvir o Milton “lá no clube da esquina”
Cantando ao lado da rainha Elis Regina.

Quero “sem lenço e documento” o Caetano
O Djavan mostrando a cor do “oceano”.
Vou “caminhando e cantando” com o Vandré
E a outra vida, Gonzaguinha, “o que é?”

Atenção DJ faça a sua parte,
Não copie os outros, seja mais “smart”.
Na rádio ou na pista mude a seqüência,
Mexa com as pessoas e com a consciência.

Se você não toca letra inteligente
Fica dominada, limitada a mente.
Faça refletir DJ, não se esqueça,
Mexa o popozão, mas também a cabeça.

Para conhecerem melhor a dupla, acessem: www.adupla.com