Na capa do volume de “O Morro dos Ventos Uivantes” que li, existe, sobre um selo vermelho, os seguintes dizeres: “O livro favorito de Bella e Edward da série Crepúsculo”. Só isso bastaria para espantar qualquer leitor sensato. Bem recomendado, porém, tive o prazer de lê-lo e posso dizer: que susto tomarão as menininhas desavisadas se pensam que encontrarão nele mais uma perfeita historinha de amor.
O romance escrito pela poetisa inglesa Emily Brontë, ainda na primeira metade do século XIX, é a única publicação em prosa da autora, que viveu apenas 30 anos – entre 1818 e 1848. No período da publicação, O Morro recebeu várias críticas desfavoráveis, mas logo ascendeu aos clássicos da literatura inglesa, devido à riqueza de seus personagens e os significados escondidos por trás de cada um deles.
O livro narra não só as histórias de duas famílias de propriedades vizinhas, os Ernshaw e os Linton, como também a devastadora e obsessiva paixão entre Heathcliff e Catherine.
Heathcliff é um personagem sem passado. Trazido para a casa dos Ernshaw ainda na infância, ali conhece aquela que viria ser sua melhor amiga e, mais tarde, seu grande amor, a bela Catherine. Criados como irmãos e isolados do mundo na fazenda do Morro dos Ventos Uivantes, o casal de jovens se apaixona, mas são separados pela própria vida e pelos preceitos que os distinguem. Apesar dos fortes sentimentos em comum, Catherine era uma dama culta, de família tradicional e personalidade forte; já o rapaz não tinha ascendência, era visto como um bruto e tinha um orgulho e uma personalidade ainda maiores que os de sua amada. Dessa forma, o próprio modo de ser de ambos acabou por separá-los, porém não foi capaz de destruir o grande amor que os unia.

Ralph Fienes como Heathcliff
Privado de sua amada pelo simples orgulho de ambos, Heathcliff foge para ganhar a vida sozinho e, anos depois, volta rico, ostentando a aparência de um perfeito cavalheiro. Para sua decepção, no entanto, sua amada Cathy já havia se casado com o vizinho Edgar Linton. Restava a Heathcliff não só conformar-se ou mesmo reconquistá-la, como também cumprir seus planos de vingança contra aqueles que o acolheram e o humilharam para, por fim, consumar sua obsessão por Catherine.
Falando dessa forma, parece que o livro se remete a mais um tradicional triângulo amoroso. Não se enganem, pois daí em diante (ou mesmo já desde o início), a narrativa de Emily Brontë envereda pelo o que há de pior numa história de amor: obsessão, ganância, ciúmes, rancor, uma idolatria obsessiva e mortal e, por fim, a vingança fria e premeditada.
Na primeira parte do romance, Catherine parece ser o ponto central. Apesar de sua personalidade forte, se mostra incompleta ou, melhor dizendo, indecisa: presa entre os desejos e sonhos primitivos e aqueles realistas e racionais dos quais dependem seu futuro. É diante dessa bifurcação que Catherine rejeita Heathcliff, suprimindo suas mais bárbaras aspirações, e se volta para Edgar. É neste que, herdeiro de grandes propriedades e títulos de nobreza, ela avista seu futuro promissor; optando pela segurança em detrimento da aventura. No entanto é impossível para qualquer pessoa viver sem contrabalançar aquilo que os chineses chamam de Yin e Yang ou – afinal o assunto aqui é literatura inglesa – o que Stevenson chamou de Jekyll e Hyde: os lados racional e primitivo de cada um de nós.

Fiennes e Binoche como Heathcliff e Cathy
A vida de Catherine com Linton acaba por se tornar perfeita demais, enfadonha e entediante, cercada de empregados, livros e excesso de comodidade. Ela se torna uma rainha dentro do lar, se acomoda e até perde boa parte de sua petulância. Com o retorno de Heathcliff, tantos anos depois, Cathy, mais do que seu antigo amor, redescobre a vivacidade e as aventuras da infância e da juventude. Mais uma vez ela tenta equilibrar sua existência, fazendo, em vão, com que Edgar aceite Heathcliff em suas vidas. E mais uma vez ela tem sua personalidade bifurcada. Dessa nova dúvida, surge morte e renascimento: a renovação da vida no Morro dos Ventos Uivantes.
Se a interpretação acima dá a Catherine certa importância, engana-se quem pensa ser ela a mocinha a ser salva e amada. Não mesmo. Não existem heróis ou mocinhos na história. Os personagens que vivem no Morro dos Ventos Uivantes são apenas humanos. Todos crescem e evoluem no decorrer das páginas e não existe um sequer que o leitor não consiga odiar. Pois sim, todas aquelas personalidades – do mais baixo empregado ao mais rico patrão, passando até pelas crianças – são tão fortes e cheias de defeitos que não fogem ao ódio do leitor. Até mesmo os princípios religiosos, os mandamentos de Deus, aqui personificados e entoados às ladainhas pelo fanático Joseph, são apresentados com certa parcela de culpa sobre as mazelas dessa fatídica história. Passa-se por fim a adorar todos pelo simples fato de não se identificar com a podridão de nenhum deles. Nem mesmo a narradora (o livro é contado em primeira pessoa pela governanta Ellen Dean) consegue fugir aos defeitos humanos, com seus atos irresponsáveis, suas decisões tomadas por excesso de compaixão e, muitas vezes, por medo. Esta última, talvez, a grande culpada de toda a tragédia do livro.
Melhor nem estender muito sobre os personagens, pois cada um mereceria um artigo à parte, tal suas riquezas e unicidades.
Além das qualidades particulares desta obra de Brontë, que a torna singular e incomparável, existem ainda outros atributos que, apesar de comuns em muitos livros, a enriquecem ainda mais: o testemunho de uma época. Estão ali presentes não só as belas paisagens, frias e cinzentas do norte da Inglaterra, bem como também todos os costumes da sociedade rural inglesa do século XIX; como um título de nobreza pode separar com abismos duas classes igualmente ricas; a importância de um sangue tradicional; a grande fenda que separa os cultos dos iletrados, impedindo até mesmo uma simples amizade. E muitas outras peculiaridades da Era Pré-Vitoriana.

Capa do DVD da adaptação de 1992
Há ainda várias características comuns ao período gótico. A começar pelo próprio Heathcliff, com sua pele escura e seus traços de cigano e os mistérios não revelados de sua vida. E, como não poderia faltar, existem ainda fantasmas e vampiros, apresentados, porém, em sonhos e delírios durante as doenças febris e aflições dos protagonistas.
Não há como negar que Emily Brontë construiu em O Morro dos Ventos Uivantes uma belíssima obra de leves traços góticos que envolve mais terror e sofrimento, do que afeição e alegrias. Um caso de orgulho e obsessão que, confundido com amor, foi capaz de vencer as barreiras da morte. Tanto que, em 1957, o escritor francês Georges Bataille o classificou como “um dos mais belos livros da literatura de todos os tempos”. Enquanto o crítico americano Harold Bloom sentenciou, em 2002: “Uma obra de uma grandiosidade solitária”.
Com toda a certeza, um disparate este livro ser citado tão fora de contexto na obra de Stepheny Meyer. Mais um motivo – bem forte – para eu criticar Crepúsculo.
Curiosidade: o livro teve várias adaptações para o cinema. A mais recente delas é a do diretor Peter Kosminsky, de 1992, com Ralph Fiennes e Juliette Binoche.
Título: O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heigths) Autor: Emily Brontë País: Inglaterra Publicação Original: 1947 Publicação Lida: Editora Lua de Papel, 2009