A Geração Coca-cola Morreu

“Geração Coca-cola” deveria ser proibida e jamais tocada novamente por qualquer banda! Uma das mais desafiadoras canções de Renato Russo marcou uma geração, mas perdeu seu contexto, ficou desatualizada, deixou de fazer sentido. Ouvi-la e cantá-la hoje em dia é pura hipocrisia!

Composta por volta de 1978-9, “Geração Coca-cola” é destinada a um público em específico: jovens que nasceram na ditadura militar, viram a repressão, sentiram a estagnação e lutaram – em segredo ou não – para pôr fim ao governo tirânico dos generais. Era uma época completamente diferente da atual. O restante do mundo se dividia em dois, em uma guerra não declarada, às portas de uma possível aniquilação da vida sob o inverno nuclear. As pessoas tinham motivos para lutar e transgredir. Havia um “inimigo” em comum a ser combatido, a rebeldia adolescente não era sem causa e o povo não apenas clamava por mudanças… eles agiam!

“Quando nascemos fomos programados a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos U.S.A, de nove as seis.”

Após a Segunda Guerra Mundial, a influência norte-americana sobre os países capitalistas crescia cada vez mais. A cultura pop estadunidense e sua indústria eram literalmente impostas aos países amigos. A marca Coca-cola, que intitula a canção, já estava presente no Brasil desde 1942, mas só ganhou força nacional no início da década de 1970, tornando-se o ícone máximo do imperialismo norte-americano.

Legra original de Geração Coca-cola

No Brasil, a programação televisiva era dominada pelos seriados americanos. Mesmo o horário citado na letra da canção não foi escolhido aleatoriamente. Os períodos da manhã e da tarde tinham baixa audiência (como têm ainda hoje) e, portanto, era bem mais barato para as emissoras de TV brasileiras retransmitirem programação estrangeira que produzir algo original. O “horário nobre” começava (e ainda começa) às 6h da tarde, quando finalmente uma programação nacional entrava no ar, com telejornais, novelas, musicais e programas de variedades. Das 9h às 18h, no entanto, o que mais se via eram os chamados “enlatados americanos”, em referência aos produtos industrializados importados.

“Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial, mas agora chegou nossa vez, vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”.

A economia ia bem, porém quase nada era originalmente brasileiro. Indústria e comércio automotivos e alimentícios eram filiais de empresas estrangeiras, que chegavam ao país apenas com a promessa de empregos, pois levavam para fora todo o lucro e seus royaltys. Impulsionados pela publicidade da TV, os jovens consumiam tudo o que era produzido ou importado e assim, levando adiante a máxima latina panem et circensis, o governo tentava acalmar e manejar as massas.

Show do Aborto Elétrico na UnB (1978)

Entretanto era chegada a hora de revidar e aqui começa a coragem de Renato Russo e companhia ao propor, lá em Brasília, debaixo dos bigodes dos generais, “cuspir de volta o lixo em cima” dos repressores. E, dessa maneira, ele intitula sua própria geração como “filhos da revolução”, “burgueses sem religião”, “futuro da nação”… e o título que marcaria para sempre os jovens setentistas e oitentistas: “Geração Coca-cola”.

“Depois de 20 anos na escola não é difícil aprender todas as manhas do seu jogo sujo. Não é assim que tem que ser?”

Era o momento de mudar, de deixar de ser o “país do futuro” para assumir sua posição no presente. Os jovens começavam a se manifestar abertamente. O próprio movimento das Diretas Já aconteceria dali a 3 anos apenas. Os 20 anos de escola, citados na música, podem fazer referência tanto aos estudos em si, quanto ao tempo de ditadura, que já governava por quase duas décadas. E engana-se quem pensa que o verso final desta estrofe é uma negativa: é uma ofensiva indagação.

O “dever de casa” citado logo a frente faz exata referência a essas mudanças, a esse novo modo de pensar, à experiência adquirida com o tempo.

“Vamos fazer nosso dever de casa e aí então vocês vão ver suas crianças derrubando reis, fazer comédia no cinema com as suas leis.”

As crianças criadas pela ditadura militar haviam crescido, iriam se voltar contra seus criadores e debochar das leis que eles criaram. Iriam fazer comédia no cinema com tudo aquilo que estava prestes a acabar.

Primeiro álbum da Legião (1985)

Eles – toda a juventude da época – eram os filhos da revolução. Eram a Geração Coca-cola. Mudaram o país, venceram seu inimigo, derrubaram o mal que os dominava. E prometeram um país melhor daí por diante.

Mas a Geração Coca-cola morreu.

Se renderam ao tempo, ao sistema, ao modo de vida que antes abominavam.

As pessoas que na época ouviam Aborto Elétrico estão hoje com seus 45 ou 50 anos, muito bem vivos, casados, pais de família, ativos no mercado de trabalho. No entanto diferentes, talvez céticos e endurecidos demais para terminar o que começaram há 30 anos atrás.

Os velhos “inimigos” tornaram-se sombras de um passado remoto e os novos parecem se misturar à multidão de tal maneira, que passam totalmente despercebidos. Tão, mas tão despercebidos que, muito provavelmente, você mesmo que agora lê este texto, pode ser um destes novos repressores… só não percebeu isto ainda.

E diante de tanta estagnação, a geração do século XXI parece ter se acomodado. Diz, mas não faz; reclama, mas não luta; clama, mas não busca. Deixe como estar, que talvez um dia alguém conserte! É assim que todos parecem pensar.

E tudo isto justifica a proposta de se proibir a execução da velha música de Renato Russo. Apesar de parecer atual, ela é apenas uma lembrança. Lembrança de tempos duros e tiranos. Mas apenas uma lembrança. E hipócritas são todos aqueles que hoje a ouvem, vibram e se emocionam.

Curiosidade: Geração Coca-cola foi a canção que abriu as portas das gravadoras para a Legião Urbana, quase 3 anos após o fim do Aborto Elétrico. A música foi apresentada à EMI em uma fita demo, pelos integrantes dos Paralamas do Sucesso e, originalmente, possuía um ritmo bem mais suave. Foi somente a pedido da gravadora que Geração Coca-cola ganhou seu arranjo mais pesado. Relembrando este passado, a Legião tocou a versão original da canção no lendário show do Metropolitan, no Rio de Janeiro, em 1994, que deu origem ao álbum “Como é que se diz eu te amo”.

Apesar de composta para o Aborto Elétrico, Geração Coca-cola só veio a ser gravada oficialmente 1985, no primeiro álbum da Legião Urbana.

Leia também as análises de:

“Índios”

Daniel na Cova dos Leões

*ABAIXO SE ENCONTRAM, PARA MAIOR ENTENDIMENTO DO LEITOR, UM CLIP DA MÚSICA E SUA LETRA:

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove as seis.

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de 20 anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola

Depois de 20 anos na escola
Não é dificil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola