Diariamente, aquele jovem garoto aproveitava o horário do recreio para visitar a biblioteca. Por mais que tivesse amigos dos mais variados e se desse bem com os colegas, gostava de passar o intervalo das aulas junto aos livros. Ele não tinha mais que 15 anos de idade e gastava aqueles 15 minutos livres para conhecer mundos completamente diferentes do seu.
Entre aventuras da Série Vaga-lume e mistérios de Agatha Christie, aquele jovem encontrou um volume de quadrinhos, encadernado com capa colorida. Ainda que pouco conhecesse sobre a vida, compreendeu com facilidade o humor crítico daquelas tirinhas e se fascinou com aquela protagonista tão jovem e que era simultaneamente impetuosa e reflexiva.
O garoto percebeu que havia um número em destaque na capa do livro e deduziu ser aquele apenas um único volume de uma vasta coleção. Em meio à desorganização da biblioteca, seus horários do recreio se tornaram uma caça ao tesouro: todos os dias ele vasculhava as prateleiras em busca de uma edição dos quadrinhos e, ao encontrar, se deliciava com as histórias da menininha questionadora.
O adolescente era este mesmo que agora vos escreve e a menina dos quadrinhos se chama Mafalda – a obra máxima do cartunista Joaquim Salvador Lavado Tejón, o Quino!
Mafalda traduzia em palavras muito daquilo que eu mesmo pensava, questionava e acreditava, sem nem sequer perceber que o fazia. Aquela garotinha de 8 anos era um pouco de mim e traduzia de forma simples muito do mundo ao meu redor. Uma brasileira como todos nós, com toda a certeza!
Qual não foi minha surpresa ao descobrir, algum tempo depois, que Mafalda não era daqui. Era argentina de nascimento e criação! E nem sequer era atual, havia sido publicada décadas atrás (entre 1964 e 1973). Ainda na adolescência, essas duas descobertas me fizeram abrir os olhos para fatores que mudariam para sempre meu modo de ver o mundo. Como dizia Mafalda, refletindo meus próprios pensamentos, para mim “o mundo era um lugar bem longe daqui”.
Com ela, enfim, percebi que os costumes, idiomas e culturas podem variar, mas as necessidades humanas, as questões sociais, as incertezas e as filosofias são universais. Como dizia aquele quadro de humor da TV: “Já vi que lá é como cá” e a partir daí passei a ver o mundo todo de outra forma. Talvez tenha sido o início da queda de alguns dos meus muitos preconceitos.
No período em que aqui se vivia sob a dura censura do governo, na Argentina Mafalda abordava temas ainda atuais, levantando questões feministas, raciais, culturais e políticas, de forma tão singela que somente uma criança poderia fazer.
Anos mais tarde, Quino ainda me fez ver além, dessa vez não com suas personagens, mas com sua própria vida. Depois de ficar órfão aos 16 anos, abandonou o pouco que tinha para correr atrás do sonho de se tornar quadrinista. Saiu da província e foi viver de forma precária na capital do país, em busca de uma oportunidade. Não tardou a conseguir publicar suas primeiras histórias e em pouco tempo fez fama nas páginas dos jornais de Buenos Aires.
Do Rio da Prata para o mundo, Quino foi tão universal que invadiu a Europa e alcançou diversos países do globo. Foi traduzido até para diferentes vertentes do mandarim chinês. Como não se instigar com um vizinho que partiu da periferia do mundo e alcançou tanta influência? Como não se questionar sobre nós mesmos ou não valorizar nosso lugar no mundo diante das reflexões de sua obra? Mais uma vez nas palavras de Malfada: “Alguma coisa está errada, se nós sofremos juntos, porque não lutamos juntos?”
Por fim, uma das tirinhas de Quino, que li há mais de 10 anos, marcou para sempre minha vida. Nela, um velhinho conversa com sua neta em meio às estantes de sua biblioteca. Ele conta para a menina que passou a vida estudando a cultura e a história dos diversos povos do mundo e aponta para os livros nas prateleiras: gregos, persas, astecas, maias, indianos e tantos outros. Empolgada com a fala do avô, a garotinha pergunta entusiasmada: “E nós, vovô? Quem somos nós?”
No quadrinho seguinte, a garota está na sala, conversando com a mãe. A mulher pergunta sobre o avô, e a menina responde: “está chorando na biblioteca”.
O velho dedicou a vida a conhecer o mundo… mas não conhecia a si próprio, sua família ou suas origens.
Quino partiu na manhã de ontem, 30 de setembro de 2020. Ao mundo ele deixou a inocência questionadora de Mafalda. Para aquele adolescente de 15 anos, ele deixou lições que nunca serão esquecidas.